quinta-feira, 27 de setembro de 2007

um enigma e dois coelhos

Existe na cena televisiva nacional um comediante (entertainer?) que um dia teve graça: o Herman. A propósito de um par de situações insólitas e bizarras a que recentemente assisti, recordo agora vivamente um sketch protagonizado por ele e por um outro actor, que resume quase na perfeição a realidade que mo fez recordar, tantas as semelhanças que encontro.
Compartilho convosco.

Cenário: consultório médico, com uma secretária que tem em cima um candeeiro de generosas dimensões, atrás da qual se encontra o clínico (Victor de Sousa, com os seus indisfarçáveis tiques e toques).
Entra o doente (Herman), que se dirige ao médico, entabulando um diálogo que se desenvolve mais ou menos desta maneira:

D (doente): Doutor, tenho que falar consigo.
M (médico): Então conte-me lá o que o preocupa.

O doente, entretanto, aproxima-se da secretária e agride o candeeiro com potente e ruidosa cabeçada, que quase o coloca no chão.

D: Dr, tenho mesmo que lhe revelar uma coisa.
M: Ó homem, conte-me, não tenha problemas.
D: Dr... eu descobri... eu descobri que não sou maluco...
M: Não?
D: Não, Dr, eu não sou maluco. Eu sou é surdo-mudo.



Agora digam-me: que cena da vida real é que me fez lembrar esta de ficção?
Ajudo, dizendo que a resposta pode ser dada numa frase popular.
Alguém que resolva o enigma.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Imaginário XI - o anti imaginário

Há muitos anos (é o que dizem) havia uma linda donzela (também é o que dizem). Essa donzela premeteu que nunca iria interromper o seu crochet até chegar o seu príncipe encantado. As amigas dela diziam-lhe para ela ir para a night mas ela preferia ficar lá no cimo do castelo. Queria entrar para o guiness, mesmo que o rei seu pai se estivesse nas tintas para isso.

"Ó filha, preciso que cases com o Fréderic por causa de uma aliança."

"Ó papá, desculpa lá mas eu fiz esta promessa a nossa Senhora e não posso quebrar. O Fréderic não é o meu príncipe."

O rei já não sabia muito bem o que fazer, até porque aquele crochet estava a tornar-se interminável. Já tinham percorrido o reino todo à procura de novelos e a recessão por causa da falta de aliança com o reino de Frederic estava já num ponto tão mau que os impostos eram pagos em fio de algodão para que a donzela nossa princesa continuasse a cumprir a sua promessa.

Um dia, já metade do reino tinha sido transformado em campo de cultivo de algodão, não com muito sucesso por causa do clima, mas pronto, o papá rei perguntou como raio é que ela ia saber que era o seu príncipe se nunca saía de casa, nunca ia ao shopping, nunca ia para a night, não conhecia ninguém, nem sequer tinha ido para a faculdade.

"Ó papá, vê-se logo, então... ele vai mandar-me um mail a pedir para ser meu amigo no Hi5!"

"Mas ó filha, nós não temos internet!"

"Ó papá, mas isso é porque ainda não inventaram computadores. Vais ver que mais dinastia menos dinastia tudo se resolve."

O rei já não sabia o que fazer.

Resolveu entregar a regência ao seu melhor amigo e reformou-se. Foi para Marrocos e deu início à maior plantação de Cannabis do planeta. Ainda hoje é possível ver, sobrevoando os campos que foram seus, mensagens de pedidos de auxílio como "por favor, se és príncipe liga para o castelo da donzela Amarela e diz que és quem ela espera. Dão-se alvíssaras, pagas em Haxixe."

As amigas da donzela tornaram-se groupies da banda de trovadores e pensavam que todas as músicas lhes eram dedicadas. A dada altura os trovadores resolveram casar com elas só para elas ficarem em casa com os miúdos.

A mãe da donzela foi para um lar de qualidade, ou pelo menos era o que dizia a publicidade, já que quando lá chegou veio a descobrir que a Lili Caneças estava lá cheia de adesivos para lhe segurar a cara. Processou a empresa de publicidade e com o dinheiro que recebeu de indmenização de danos morais e visuais abriu uma escola de aeróbica.

Quanto à princesa donzela Amarela, das duas uma: ou nenhum príncipe sobrevoou a áera de plantação ou nenhum deles queria haxixe porque a donzela nunca saiu da torre. Também nunca ficou só, já que recorria frequentemente a serviços de acompanhamento, conforme a PJ veio a descobrir depois de investigar as contas do reino. Veio a descobrir-se também que ela passava largas horas ao telefone como padre Jeremias, já que toda a situação da promessa e depois os acompanhantes a faziam sentir-se pecadora, mas por causa dos quilómetros de crochet que já tinha não conseguia sair do quarto. Felizmente lembrou-se de deixar vaga a janela e recebia comida por lá.

E pronto. Foram felizes para sempre. Ou então não, mas também já ninguém se lembra.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Em Fogo 1 - Incompreensões

Alguma vez se questionaram sobre o que é não ouvir? Não conseguir distinguir a voz da nossa mãe ou a melodia de uma música?
Ter uma deficiência auditiva é sempre limitador, contudo, a pessoa em causa não pode nunca desistir de lutar e sonhar. Não ouvir, ou ouvir pouco, não implica aproveitar menos a Vida... um surdo pode dançar desde que se encoste a uma coluna de som e sinta a vibração da música; pode tocar e/ou sentir o toque de outra pessoa; pode olhar e apreender toda a beleza do Mundo que o rodeia; pode saborear o paladar das coisas boas da Vida...
Infelizmente, existe um elevado grau de preconceito da sociedade, sustentado pela falta de capacidade em aceitar aqueles que são diferentes e uma imensa dificuldade em comunicar para quem tem uma deficiência auditiva num Mundo que abusa da palavra falada e não se preocupa com os outros. Contudo, um surdo pode viajar e sonhar nas páginas de um livro de uma forma totalmente submersiva e superior aos outros, dado que todo o ruído externo é eliminado.
As pessoas que não comunicam isolam-se e sentem um profundo abandono, mas será que alguma vez repararam na alegria e vivacidade de uma conversa em linguagem gestual? Não são apenas as mãos que mexem, mas também o corpo e os olhos.
Existem ainda aquelas pessoas que necessitam de usar aparelho auditivo, contudo e ao contrário do que se possa pensar, não é algo fácil já que têm de reaprender a ouvir, aprender a lidar de novo com as vozes que sempre conheceram separando-as do zumbido constante dos ouvidos. Muitas vezes quem tem aparelho auditivo precisa de ter paciência porque não se apreende logo a letra de uma música ou o que os outros nos dizem.
No fundo, ser surdo ou usar um aparelho auditivo, não é desculpa para baixar os braços e deixar a Vida passar... porquê ter vergonha (como existem pessoas que a têm) de usar um aparelho quando as pessoas que nos amam gostam de nós pelo que somos?
O mais importante reside no estreitamento do relacionamento entre surdos e pessoas "normais" porque, no fundo, todos falamos e sonhamos na mesma linguagem. Para finalizar pergunto: "o que é ser normal?" O conceito de normalidade varia consoante quem os apresenta, mas de uma coisa eu posso afirmar, viver continua a ser um desafio maior do que lamentar aquilo que poderiamos ser.
Carpe Diem.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Vivências 12...


Ouvindo Amy Winehouse na sua melodia mais bem conseguida "Black to Black", recordo a historia do Henrique...
50 anos, 30 e tal de toxicodependência.
Muitas vezes a tentar mudar de vida...
Ainda mais vezes a tentar eventualmente, mudar de hábitos...
Companhias, amigos, sítios...
Por fim, depois de muito tempo de esforço, alugou uma casa, tinha encontrado um emprego: "O patrão é uma gentil pessoa, à moda antiga!"
Tinha decidido naquela noite estrelada que lhe amansava o coração como um manto quente que, amanhã telefonaria ao filho que não via também, há coisa de 30 e tal anos...
"Devia estar um homem!" o pensamento embalou-o pela noite.
No dia seguinte, em muitos anos, acordou pela primeira vez com um sorriso franco e sincero...
Telefonou ao Bruno, do outro uma voz trémula quando ouviu:
- "Filho sou eu..."
- "Sim... pai... então e como estás?"
- "Bem. Com saudades tuas... Creio que já nem me lembro da tua cara... queria que soubesses que tenho uma casa, que estou recuperado, que tenho um emprego, que te posso ajudar... gostava que viesses cá um destes fins-de-semana, só para te ver, não precisas de demorara muito se não quiseres..."
- "Oh pai... pois... quer dizer..."
- "Compreendo... não podes! Tens a tua vida, as tuas coisas!"
- "Não... preciso de saber só se a mãe me empresta o carro!"
Assim ficou, marcado para dali a 5 dias.
O Henrique mal viu o Bruno, não cabia em si de contentamento.
Almoçaram numa tasca que segundo diziam tinham uns belos petiscos, e tinha mesmo.
Decidiram dar uma volta na pequena vila onde agora o Henrique vivia com medo da cidade, daquilo que lhe lembrava outras coisas.
Por fim, o Henrique lembrou-se que podiam ir a uma das praias fluviais que havia em fartura na zona... O Bruno acedeu, estava calor.
Não havia muita gente, estavam acompanhados apenas por um casal que namorava alegremente.
Falaram da mãe, como estava o que tinha feito, falaram da namorada do Bruno e de como gostava dela e até já lhe sentia algumas saudades das curtas horas que ali estava... O pai sorriu e pensou "Está bem, feliz, que bom!".
Tudo mais ou menos que se quer para um filho, ao fim de 30 anos.
"A tua mãe fez um bom trabalho e creio que o teu padrasto também não deve ser má pessoa!" Sorriu-lhe e piscou-lhe o olho.
O sol estava de facto quente, o Bruno comentou:
- "Que sitio agradável de facto. Vou dar um mergulho!"
- "Espera lá, as águas aqui são um pouco como as mulheres: cheias de manias!"
Mergulhou...
Lá em cima, ninguém sabia, tinham aberto as comportas da barragem...
De repente o pequeno riacho tornou-se num imenso mar tortuoso...
O Bruno só teve tempo de ver o pai desaparecer no meio da turbulência...
Passados dois dias deram com o corpo vários metros abaixo dos pequenos rápidos...
Verteu-se uma lágrima...
Apenas uma, por tudo o que ficou por cumprir!

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Imaginário X

José, conhecido lá na empresa como Zézito por ter começado a lá trabalhar há tantos anos que nem ele se lembra, aguardou um pouco à porta do gabinete do director geral.

Quando foi trabalhar para aquela empresa eram poucos. Havia o Manel, o Tó, o Costa, o Álvaro, já reformados nesta altura, o Costa e o Tó já falecidos que nem tiveram tempo para gozar a reforma que foram logo levados "e por isso é que eu trabalho, parar é morrer!" - dizia sempre o Zézito - a Amália, a Mani, a Litas. Também elas já foram, a última vez que soube delas estavam a Litas com a família, a Amália num lar e a Mani tinha emigrado há anos, lá para África do Sul, ajudar o genro e a filha que tentavam uma vida nova.

A empresa já não era como ele a tinha conhecido: familiar, com gente amável, o dono a quem nunca tiveram problema em recorrer "que se for preciso, "xô" Filipe, já sabe que estamos cá e conta connosco! "
Nessa altura faziam-se festas no Natal. As esposas e esposos eram convidados, os filhos ficavam em casa e confraternizava-se como se de "iguais" se tratasse, até que o "xô" Filipe morreu de doença agravada e tudo mudou.

Zézito recordava alguns destes momentos de coração palpitante. Os seus ouvidos voltavam a encher-se de música e os seus olhos viam com nitidez o Sr. Filipe Paiva e a esposa a abrir o baile, as mesas com bolinhos e copos de bebidas diferentes. Nessas alturas não conseguia evitar que uma lágrima pesada, teimosa e irrequieta lhe descesse face abaixo para logo a seguir sentir o molhado nas mãos "olha agora, ó Zézito, então dá-te para chorar?" e logo passava o lenço de pano gasto pelo tempo nos olhos.

Agora tudo era diferente. Desde que o Sr. Filipe tinha morrido e que os filhos venderam o sítio que tudo era diferente. Tinham conseguido que eles lá ficassem, "eles", os velhos que ainda "vêem do tempo do paizinho... se os mandamos embora para onde é que vão?".

Estes miúdos novos que mandavam nisto agora não tinham respeito por ele nem pelos outros. Se a ele se preparavam para o despedir, aos outros preparavam-se para os substituir. Se a ele lhe tinham arrancado a sua rotina e achincalhado a sua dignidade, aos mais novos tiravam a vontade de prosseguir a cada dia que passava. As queixas eram muitas, as condições quase inexistentes.

Zézito era o único que restava de um tempo glorioso que aquela empresa viveu, sabia que todos o que formavam a outra parte do que considerava ser a sua família já tinham partido e ele estava só.

Em casa Zézito tinha visto Deus levar a sua Mina depois de meses de sofrimento em que não saiu de ao pé dela. Já na altura só a tinha a ela, que foi para junto de Deus e dos dois filhos que a febre levou, tão pequenos e frágeis eram, que nunca o desgosto lhe passou.

Agora Zézito aguardava a reforma para ir morar com a irmã e o cunhado lá para os lados de Portalegre, que a velhice quer-se perto da família para ter alguém na hora da morte.

Zézito estava à espera à porta do director geral quando sentiu o chão tremer. Desequilibrando-se caiu desamparado, algo lhe bateu na cabeça e antes de perder os sentidos ainda sentiu o quente do sangue escorrer pela cara e pingar no chão. Ainda conseguiu ouvir alguns berros de medo, pensou ele, enquanto tentava dizer que era só um abalo, logo passava... mas já não conseguiu.

À porta do gabinete veio a correr o Engº Silva. Chamou imediatamente uma ambulância.

Zézito teve direito a um funeral com pompa e circunstância. O Engº fez um discurso. Flores foram atiradas para a cova. Um punhado de terra. Uma oração.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Vivências 11...


"Fiel é algo que não consigo ser Dra."
O Tiago di-lo de forma despreocupada como se fosse o mais normal de se ser!
Mais à vontade fica ainda quando admite que não o faz com qualquer tipo de protecção: "Sabe que conheço as miúdas desde que éramos gaiatos por isso, não percebo...!"
Não dissertamos acerca do que é ser fiel mas sim acerca da sua saúde, dos cuidados que deverá ter com ela... O Tiago contudo, surpreendentemente, pergunta: "E para si o que é ser fiel?"
Ignoro a provocação uma e outra e ainda outra vez, na quarta investida "cedo e respondo o "banal cool": "É sermos fieis a nós próprios!"
Fica em silêncio mais uns minutos e começa-se a antever alguma ansiedade estamos no Curry Cabral nos infecto contagiosos e estamos à espera dos resultados das análises...
Volta a dizer: "Mas e você é fiel a si como?"
Volto a falar da importância da sua saúde de sua historia de vida e fujo um pouco à pergunta que acho pertinente mas, demasiado, intrusiva...
Entrou nesse momento uma rapariga, muito magra, já com marcas de desgaste da doença e com uma filha que não devia ter mais de 2 anos ao colo... Não sabíamos quem suportava quem... A criança linda de feições de cuidadas ria para mãe e dizia-lhe: "Tás triste mãe!" a mãe disfarçou uma lágrima e depois respondeu com um leve acenar de cabeça dizendo: "Não amor, é só porque não gosto de hospitais!" a criança creio, não se deixou enganar, confortou a mãe disse-lhe "Eu sei mãe também não gosto nada de vir às picas!"...
O Tiago olhou-me um pouco de lado e comentou quase em surdina: "A mãe nunca vai ver aquela miúda crescer pois não?", de forma quase que automática e para não deixar que outros sentimentos tomassem conta de mim disse-lhe rapidamente: "Não!"
"Sabe - continuou ele - se eu tiver algum problema é porque fui parvo durante muito tempo mas olhe que esta rapariga pode ter tido mesmo só azar... é triste!"
Não lhe disse nada, fizemos de novo um grande silêncio...
Passado pouco tempo perguntou mais uma vez: "O que é sermos fieis a nós?"
Estava esgotada nesse dia, tinha tido um dia de trabalho intenso no dia anterior, no próprio as coisas não tinham corrido melhor... estar no Curry Cabral aquela hora possivelmente, era a ultima coisa que me apetecia...
Acabei julgo, por ceder: "Sermos fieis a nós próprios é complicado e nem sempre significa o mesmo para cada pessoa... não sei o que lhe diga...!"
"Sim mas para si é o quê?"
"É o comprometermo-nos de tal forma com o nosso intimo com a nossa ética qu que depois não conseguimos pedir menos do que isso ao outro... se ele não cumpre... temos a sensação de traição, de infidelidade, de engano, de falsidade...! Ninguém dá sem no fundo, querer receber algo em troca, nem que seja apenas, amor..."
"Ah... compreendo... pois então tinha razão... Não consigo ser fiel... nem a mim mesmo!"
"Sim Tiago, mas neste caso garanto-lhe, é você quem perde!"
O resultado das análises por fim, chegaram, pediu-me para ser eu abrir... Não tinha HIV mas 2 tipos preocupantes de hepatite... Chorou pelas duas razões e conclui-o: " Tenho de descobrir a minha fidelidade..."
"Penso que seria melhor que assim fosse Tiago... penso que sim..."

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

propriedade

Não me enquadro, nunca me enquadrei. Nem na relação legítima, entre direitos e deveres. Mesmo gostando de algum tipo de dependência, a independência é-me necessária e querida; mesmo sentindo necessidade de ser social, o individual ocupa um espaço importante em mim.

Não queiram que eu seja, porque eu sou sem me dizerem; não obriguem a que eu esteja, porque eu estou sem me obrigarem; não me peçam que eu proteja, que eu protejo. E tenho mais para ser, para estar, para proteger.

Eu não sou de ninguém.
Serei: se EU quiser.


do Lat. proprietate
s. f.,
aquilo que é pertença legítima de alguém ou sobre que alguém tem direito pleno;
(...)

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Imaginário IX

Durante muitos anos passei por aquele sítio. Já tinha ouvido que teria sido uma escola... uma prisão e até um talho.

Um dia entrei. Hoje em dia é um "comes e bebes". Bolos muito bons, vista ainda melhor.

Subi as escadas. Sentei-me à janela.

Demorei o olhar sobre o forte, coberto de heras que escondem pedras sólidas e centenárias, imaginando quantos lá viveram e o que lá fizeram. Quantos barcos viram chegar, quantos abraços deram, quantas lágrimas choraram.

Fixei o olhar no rio, olhei a outra margem, o areal, as gaivotas, os barcos.

Lá em baixo ouvem-se crianças a correr e vive-se o dia-a-dia da vila.

Sentada à janela imaginei-o na escola. Pequeno, franzino, imaginei-o traquina... não sei porque o imaginei traquina. Ele, que era tão calmo e compreensivo. Mas imaginei-o traquina, distraído, bom aluno e cumpridor. Apenas reguila. Imaginei-o a falar com o colega da carteira mais próxima, imaginei uma professora de carrapito branco, óculos na ponta do nariz, o mapa de Portugal pendurado ao lado do quadro de ardósia e os meninos sentados a aprender as lições.

Imaginei-o a fazer contas de somar e dividir enquanto pensava que não estava com o pai na pesca e imaginei-o chegar a casa, dar um beijo à mãe enquanto ela lhe perguntava se tinha aprendido muitas coisas. Imaginei-o com os irmãos a estudar as lições, à pressa, antes de ir fazer travessuras com os seus amigos.

Imaginei-o a sonhar com o futuro. O que seria quando fosse grande. Que gostava da pesca mas não queria ser pescador. Que queria ser mais, um sábio, estudar e aprender muitas coisas para ensinar aos filhos e aos netos. Imaginei-o a pensar que ia casar com uma moça airosa, de cabelos longos e carinhosa, que à noite, ao chegar a casa o iria abraçar e teria sempre uma goludice para ele para sobremesa.

Imaginei que falava com ele e lhe perguntava se alguma vez, sentado naquela sala, imaginou que um dia ia ser avô.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Vivências 10...


"Sinto-me muitas vezes entre a margem da loucura e da sanidade. Creio que passar tanto tempo no meio da ponte só me ajuda a ver os outros passarem e a realizar que eu continuo na mesma!"
A Maria disse isto com o à vontade de quem está nesse ponte faz, de facto, muito tempo... mas acima de tudo disse-o já sem expressão de angústia na cara sem preocupação, sem vontade de nada...
Na realidade a Maria há muito que achava que a vida não era nada daquilo que ela tinha pensado, ou melhor, que ela um dia já tinha vivido e portanto acreditava que não estava aqui a a fazer grande coisa: "Nem útil me sinto!"
Os medicamentos já não faziam efeito, os internamentos compulsivos também não. Estava a dar a si própria a ultima oportunidade quando recorreu à psicoterapia... Suicidou-se passado 4 meses... Dizem que foi desespero, que já o tinha tentado antes e finalmente teve... "sorte"!
Creio que terá sido pena que ninguém se tenha apercebido que a única coisa que a Maria precisava era de alguém que realmente a ajudasse a ver o quanto bom é viver... O quanto difícil essa vida por vezes é mas, também, o quanto brilhante ela pode vir a ser.
Para todos os efeitos, a Maria nunca saberá o que é ter esse "gosto" na boca... e hoje todos choramos um pouco por ela.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

angústia

E agora?

Concordei em colaborar na publicação deste blog, com promessas de fazer sangue, ainda por cima, deixando a carne viva (nem que seja só a minha) com palavras cortantes ricas em sensações.
E agora?
Um mês de férias, longas semanas sem acesso web, demasiadas preocupações comigo mesmo, casa nova, vida nova, tudo novo! Bem... tudo menos eu, que sou o mesmo de sempre, apenas mais gasto e com o cabelo a insistir em descolorir nos locais mais inesperados - tal como na praia, por exemplo, nada daquilo em que estão a pensar... seus...
E agora?
As férias justificam as quatro ou cinco ausências até agora registadas e a chegada da net cá a casa tornou obsoleta a minha lista de desculpas, particularmente quando até surge uma ou outra publicação do meu "outro lado" - ao menos uma leitura desse lado confirmará inequivocamente qualquer afirmação que eu faça usando o argumento da falta temporal (?) de criatividade.
E agora?
Linko ao tal outro lado e deixo aqui a única coisa decente que me caiu do cérebro durante esta semana desinspirada? Faço-me de esquecido e envio um mail a pedir desculpa? Fujo? Desisto?

Assumo... de chapéu na mão... honestidade acima de tudo.
As facas foram para afiar e, lamentavelmente, hoje tenho que vos servir pão duro e água tépida. Fica a promessa de uma refeição gratuita durante a próxima visita.


(e as desculpas aos sócios, que dirão que a oferta de refeições é meio caminho para a falência de instituição...)

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Imaginário VIII

Mais um dia de trabalho. Mais um? Não, não mais "um".Rafael chegou cedo - como em todos os dias. Extremamente pontual na chegada e nunca preocupado com a hora da saída.
A calma dele, aquela calma que fazia com que tivesse sempre um bom desempenho, aquele sorriso tímido que arrancava sempre uma resposta favorável, o modo assertivo de falar... Muitos colegas o invejavam pela proximidade distante que mantinha, sem saberem que não era forçada, era característica do seu feitio. Sem saberem o quanto ele gostaria, secretamente, de ser mais sociável, mais extrovertido, menos calado.

"Mais um dia de trabalho",
pensou Rafael,
"vai ser só mais um dia de trabalho, ninguém se vai lembrar, não terei que fingir. Só espero ter a prenda que quero".

"Parabéns Rafael!"
Gritaram todos os colegas quando ele entrou na sala do café. Seguiram-se os abraços, as pancadinhas nas costas, as piadas.
"Hã, mais um ano.. menos juízo, já se sabe"
"Então, a tua gaja? Embrulhou-se só para ti?".

Estava tramado.

"Rafael, então, pá? É só mais um ano, pá, um sorriso é só o que se pede, homem! Parece que vieste para um funeral, caramba!"Rafael sorriu, forçado. Precisava de um canto para se enfiar, onde pudesse estar sozinho. Casa de banho. Na casa de banho pode sempre estar-se sozinho. Entrou. Escolheu a divisória mais afastada da porta. Sentou-se na sanita, trancou a porta. Pôs os pés para cima. Pegou no portátil e começou a trabalhar. Era escusado. Ia falar ao chefe. Não podia estar assim.

Saiu da casa de banho. Pousou o portátil em cima do balcão, abriu a torneira. O barulho da água acalmava-o. Arregaçou as mangas da camisa, inclinou-se para a bacia, olhando sempre olhos nos olhos no espelho. Olhando-se nos olhos. A si próprio.

"O que andas a fazer, Rafael?"
perguntou-se enquanto mergulhava a cabeça debaixo da água que corria, fria.
"O que andas a fazer?"

Secou-se. Aquela situação andava a arrastar-se há demasiado tempo. Já nem sabia onde estavam.
O que começou com um beijo fugaz na sala das fotocópias havia quase 2 meses tornou-se fogo, queimava, prendia e libertava e ele não sabia como tinham chegado ali. Já não sabia se era por vício. Já não sabia se era por curiosidade. Só sabia que o desejo da carne era insuportável. A necessidade de a ver, falar com ela. A necessidade de a tocar, de a sentir.
Tinha que falar com ela. Porque para ele não passava de carne: ela dava-lhe o melhor sexo que ele alguma vez tinha tido, sem drogas, sem álcool, sem nenhum tipo de subterfúgio. Sexo, bom. Não, bom seria pouco. Sexo muito bom, como nunca tinha pensado que existia. Era apenas isso. O resto não estava programado.
Ele queria uma mulher "normal". Dona de casa. Boa mãe, com valores. Ao mesmo tempo não queria pensar isto, mas para ele era incompatível que ela fosse excelente na cama e boa mãe de família. Ela queria ter duas: a Marta para aquele sexo do outro mundo e uma rapariga que nem precisava ser linda e boazona, bastava que fosse meiga, inteligente e boa dona de casa - como a mãe dele.

Marta abordou-o no corredor, quando ele vinha ainda a secar o pescoço com o toalhete de papel:
"Preciso falar contigo".

Rafael empalideceu. Encostou-se à parede. Não era de rezar, mas rezou. Rezou porque aquilo era apenas sexo. Nem paixão havia. Sexo. Uma queca fabulosa, um cigarro no fim, o banho. O"Até amanhã, no escritório"sem um beijo sequer.
"Estou grávida."

(Originalmente publicado aqui, no Cai de Costas)

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Vivências... 09


"Nós acabámos por ter muita sorte!"
A Ana relata a situação com uma certa tristeza num olhar cor ébano...
Continua com o olhar um vidrado no fundo da sala e uma única lágrima escapa-se rosto abaixo...
Estive 60 anos sem nunca ter tido um único namorado para cuidar da minha mãe... Um tempo que que não me arrependo mas sabe estive esse tempo todo com horas marcadas para tudo...
Um dia conheci o Jorge numas termas... foi tão elegante e com uma conversa tão interessante - a voz fica embargada e larga uma outra lágrima que mansamente lhe cai pelo rosto, treme um pouco - Recordo o seu cheiro naquele primeiro dia de Primavera como se fosse hoje, como se ele ainda aqui estivesse..."


Faz-se um silêncio profundo na sala que não sei porque razão, me deixa nervosa, ansiosa e um tanto ou quanto inquieta... A Ana não nota, continua a olhar para o fundo da sala e nunca me olha nos olhos em todo o seu discurso...


Continua: Quando viemos embora ele pediu-me o meu numero de telefone...
Passados dois dias de estarmos em Lisboa telefonou-me, convidou-me para um cinema e no fim, quando me trouxe a casa beijo-me... ao fim de todos aqueles anos, quando já não esperava ser beijada...
Casámos passados 4 meses de namoro... O Jorge morreu ao fim de 3 anos de casamento... Os 3 anos mais felizes da minha vida...
Nós acabámos por ter muita sorte... valeu a pena esperar 60 anos... ainda que com ele metade de mim tenha partido e esta estranha tristeza entretanto, se tenha instalado!
Apertámos a mão. Depois desse dia nunca mais vi a Ana, estava bem sem depressão e pronta para compreender que, o seu marido sempre tinha estado dentro de si porque ao partir, também ele deixou metade dele com ela... Hoje os seus filhos e netos, são os filhos e netos da Ana e, na sua despedida, nas suas palavras: "Sinto-me feliz! A vida é muito menos complicada do que normalmente pensamos!"
Não sinto a vida assim, mas estou com esperanças de que venha a sentir... um dia... a vida, como a Ana... ao fim de 60 anos!


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