terça-feira, 28 de abril de 2009

Imaginário XXXIX - 2ª parte

[Continuação daqui]

... já tão longínquas que nem memórias eram. Já não eram nada.

Mesmo que ela pudesse compreender o que se estava a passar dificilmente o deslumbramento a permitiria converter os flashes em palavras compreensíveis.

Do seu lado de fora os médicos lutavam para a estabilizar e reconheciam nos seus murmúrios moribundos e tentativas de gestos que o tempo dela passava mais depressa que o tempo deles, sabiam por experiência que em segundos não poderiam fazer nada.

Ela, por seu turno, fazia a viagem mais surpreendente da sua vida.

Ela não tinha a percepção que esta sua viagem por si mesma ao longo dos seus 48 anos de existência, onde ela se demorava em alguns episódios e podia até atrasar o tempo, duravam apenas uma fracção de segundo para os médicos.

Do exterior do quarto a filha fitava a máquina que fazia a mãe queixar-se, a máquina dos bip's, e via com os seus olhos o ritmo cardíaco da mãe decair a um ritmo irrecuperável.

Ela, no entanto, perdia-se nos pormenores da mais louca viagem da sua vida. A primeira coisa que queria fazer quando regressasse era contar a todos que a viagem não se faz no sentido ascendente mas no sentido descendente. A viajem é feita do fim para o início. E também que é possível interagir connosco. Enquanto decorria a viagem parecia ter capacidades inimaginadas, conseguia pensa, anotar mentalmente, conseguia reviver, conseguia tocar, falar, não havia limites.

Viajou daquele quarto de hospital cheio de bip's até ao acidente, por aí fora para trás e naquela altura todos os pequenos nadas de que foi feita a sua vida tiveram uma imensa importância. O mais simples gesto de ajeitar o cabelo e a gola da camisa todas as manhãs enquanto o elevador descia eram agora tão importantes como o nascimento da sua filha, como o seu casamento, como a morte dos seus pais e irmão. Tudo era importante. Agora via - sentia - que tudo era importante, mesmo o que parecia desprovido de qualquer sentido.

Viajou da sua idade adulta pela sua vida inteira até ao seu nascimento. No momento em que presenciava - via, sentia, ouvia, cheirava, pressentia, participava - o seu próprio nascimento sentiu uma força.

Os médicos já nada podiam fazer. Os sinais vitais atingiam os valores mínimos e sabiam que a vida se esvaía dela. Nada mais podiam fazer senão esperar o óbito.

Na sua derradeira viagem ela entrava na recta final, no último troço do último percurso da sua vida.
Assim que ela se refugiou naquele ventre que lhe oferecia protecção o seu óbito foi declarado.

4 sakês:

ThunderDrum disse...

Muito bom MESMO!!!

Ana Oliveira disse...

Uma das mais belas historias de "passagem" que li!
O conforto do ventre materno a simbolizar o renascimento,o recomeço.

Um beijo

Ana

V. disse...

Thunder, tu és suspeito, eheh

Ana, fico satisfeita comigo por ter conseguido transmitir a minha ideia, não foi fácil.
Obrigada :)

Bjoka

Júlio disse...

Dá vontade que seja mesmo assim quando chegar a minha hora...
Eu não sei como consegues, a sério...
Muito bom mesmo, como disse o ThunderDrum.


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