O pai levava a saca para o barracão que havia no quintal, um quintal diferente do normal, era mais elevado que a casa. Subiam-se as escadas e estava-se como que noutro sítio.
Ela nunca gostava de ir fazer "coisas" que o pai dizia, mas quando era ir ao quintal gostava muito. O quintal parecia outro mundo, havia sempre qualquer coisa para ver.
Mesmo sem lhe dizerem nada ela sabia que havia que descascar as favas e a saca era grande, tinha trabalho para umas tardes depois da escola. Na escola não falava aos colegas das favas, a maioria não sabia o que era descascar nem favas nem ervilhas nem feijões... pensavam, provavelmente, que vinham de um qualquer sítio já meios secos ou congelados. Para os colegas essas coisas surgiam no supermercado. Se calhar eles pensam que nasce nos supermercados, dava ela por si a pensar enquanto descascava as favas.
Numa das tardes de descasca, a reparar que já há imensas favas que estava a pôr as cascas com as favas e as favas com as cascas viu algo a mexer pelo canto do olho. Parou e olhou na direcção do movimento. Ouviu um ruído. Lentamente levantou-se e foi ver o que era. Não mexeu em nada, espreitou e viu um minúsculo ser branco. Parecia uma bolinha de pêlo. Conseguiu aproximar-se e ver que era um rato. Um rato, pequenino, com pêlo branco como a neve e olhos vermelhos, uma cauda longa. Assustado.
Pegou nele e pô-lo numa caixa de ténis. Foi buscar-lhe comida. Passava longos minutos a olhar para ele. Precisava dar-lhe um nome.
No dia seguinte foi lá. Não estava. Chamou pelo ratinho branco mas ele não estava. Sentou-se no banco, olhou para a saca das favas mas não lhe apetecia descascar. O ratinho branco veio ter com ela. Afinal estava lá. Deu-lhe a comida, mudou-lhe a água. Agora tinha um amigo.
Os dias foram passando. Uns dias ele estava na caixa outros dias saía, mas quando ela chegava ele vinha ter com ela. Até que um dia não foi. Nem no outro, nem no outro. Ela chamava pelo ratinho branco e ele não vinha. Ela punha a comida perto dos sítios preferidos dele e ele não vinha. Naquele sítio não se sentia a presença dele.
Ela começou a andar mais triste. Olhava pela porta de vidro que dava para o quintal na esperança de ver o Ratinho Branco passar, mas nada. Um dia, o pai, ao vê-la olhar tanto e desconfiado de tantas idas ao barracão disse-lhe:
- Deitei o teu rato fora.
Ela sabia que não adiantava chorar ou reclamar, o pai não voltaria atrás. E mesmo que voltasse, o Ratinho Branco já não ia querer ser amigo dela, de certeza.
quarta-feira, 31 de outubro de 2007
Imaginário XV
Sabor a Thunderlady
segunda-feira, 29 de outubro de 2007
Peixe Cru com sabor a humor
sexta-feira, 26 de outubro de 2007
Está frio...
Porque é que tenho tanto frio?
Procuro um agasalho mas não tenho, procuro um lugar mais quente, mas não o encontro...onde estou?
Como vim aqui parar?
Este lugar escuro, onde não vejo nada além desta névoa densa que quase não me deixa respirar.
Está tanto frio...
-Avô!!! – Ouço lá ao fundo...
Consigo agora distinguir, estou em casa do meu filho, no quarto da Sara, a minha neta de 8 anos...mas não me lembro de como aqui vim parar.
-Olá Sara, estás boa?
-Avô...dá-me um abraço!
-Há quanto tempo estou aqui, Sarita?
-Não sei Avô, para mim estás aqui desde sempre...
-Desde sempre?
-Sim, sempre te vi aqui, no meu quarto, onde passamos as tardes a brincar e a conversar...
-E fazemos sempre isso?
-Sim, e à noite costumas dar-me um beijo e aconchegas-me a roupa, para que não tenha frio...
Está tanto frio...
Olho pela porta do quarto e tento ver o meu filho, a minha nora, mas não vejo nada, está escuro, não vejo um palmo à frente do nariz...decido-me a chamar por ele, talvez ele saiba porque estou aqui. Grito a plenos pulmões mas o som só se ouve na minha cabeça. Para além da porta, só o vazio, o vácuo...o escuro. Está tanto frio...
-Sara, o teu pai, onde está?
-Está na sala a ver televisão...está a dar o jogo de Portugal.
-E ele não me ouve? Tem a televisão muito alta?
-Não Avô, ele nunca põe a televisão alta, porque faz dores de cabeça à mamã...
Porque é que ele não me ouve? Não me lembro de estarmos zangados, ele às vezes fazia isso quando era miúdo, quando se zangava comigo deixava de me falar e de me ouvir...mas ele já não tem idade para fazer essas coisas.
-Avô, ele não te ouve porque tu já não falas com ele...
-Mas ainda agora chamei por ele, eu não estou chateado, só quero falar...
-Sim, eu sei Avô, mas não vale a pena porque ele já não te ouve...mas ele diz que tem saudades tuas...
-Então se tem saudades porque não vem aqui ao quarto para falar comigo?
-Porque cada vez que ele entra no quarto tu desapareces...
-Desapareço???
-Sim, voltas para o escuro...
Está tanto frio aqui...no escuro.
Sabor a Thunderdrum
quinta-feira, 25 de outubro de 2007
território fronteiriço
Sabor a Cai de Costas
quarta-feira, 24 de outubro de 2007
Constatações do real
Lá fora o Sol continua a brilhar a aquecer-nos. O calendário não pára. E sob um Sol que ainda nos chega quente preparamo-nos para a mudança da hora já este fim de semana e vamo-nos apercebendo que de dia para dia as ruas têm mais um enfeite de Natal. Luzes que se vão montando que no seu conjunto formam estrelas, pinheiros de Natal enfeitados, bolas, renas, pais natais.
Lá fora o Sol brilha e nos recantos das lojas onde esse Sol não chega as montras vão ficando repletas de objectos alusivos ao Natal. Ursinhos, pais natais, inúmeras coisas que não servem para nada mas todas têm um motivo associado à época que se aproxima. Lojas de artigos domésticos apresentam montras sugestivas para a noite de consoada. Lojas de lingerie apelam aos fetiches natalícios dos mais tímidos. As outras revelam sugestões para presentes.
Lá fora o Sol teima em brilhar e atrasar a chegada do Outono mas a vida segue o seu curso. E eu, seguindo o meu curso, tento ignorar ambas as coisas. Ignorar que o Outono ainda não chegou. Ignorar que o Natal se aproxima.
Sabor a Thunderlady
terça-feira, 23 de outubro de 2007
Em Fogo 5 - Solidão
Sabor a Carpe Diem
segunda-feira, 22 de outubro de 2007
Peixe Cru em forma de medo
O autocarro estava cheio. As pessoas esperavam que a sua paragem anunciasse a chegada a um lar. As suas faces tinham um ar ansioso, mas plácido. Esperavam.
Queria dizer-lhe que nada fazia sentido. Que queria que pensassem no “nós”. Se valia a pena continuar assim.
A chave entrou devagar na fechadura. Cada som ampliava o seu medo. Não queria ser descoberto. Queria esconder-se. Que ela não o visse. Pesava-lhe o corpo pelo peso do segredo que não lhe desejava mostrar.
Pensou nisto a primeira vez que o viu. Era aquilo que queria. Desejava-o mais do que desejava qualquer coisa. E teve que o ter.
Ouviu-a levantar-se. Já não a podia evitar.
- Olá querido.
- Olá. Preciso de te dizer uma coisa.
- Que ar tão sério…
- Estou a falar a sério!
Sabia que tinha de ser agora. Tirou o peso do seu segredo de dentro do casaco, pegou-lhe com ambas as mãos e abriu a sua caixa. Não podia voltar atrás.
- Queres casar comigo? – disse, mostrando-lhe o anel.
sexta-feira, 19 de outubro de 2007
Sem ti...
Acordei.
Sinto um vazio ao meu lado.
Procuro-te na cama, mas não te encontro...
O toque frio dos lençóis indica que saíste há bastante tempo, o suficiente para eles perderem o teu calor...
Um arrepio...
Não, não podes ter saído, eu teria acordado com a porta. De certeza que tu acordaste e estás a deambular pela casa ainda meio ensonada e sem saber o que fazer...
Silêncio
Não te ouço, não sinto os teus passos, não há nada que me faça acreditar que vais voltar para a cama, para o meu lado...mas eu acredito.
Sinto o teu cheiro na almofada.
Reviro os lençóis, como se ainda te procurasse, como se ainda fosse possível tu estares ali, ao meu lado e eu não te visse, não te sentisse, não te cheirasse...
Foi por isso que saíste...?
Ainda te consigo sentir, cheirar e quase tocar...o teu cheiro nos lençóis, o teu suor, as tuas lágrimas, o teu riso, consigo ter isso tudo aqui entre os lençóis, nas minhas mãos, no meu corpo...a batida do teu coração.
Não estás...e eu sem ti acordei...
No quarto, onde em tantas noites partilhámos os nossos corpos, onde desfrutámos de cada um, nos entregámos ao prazer, onde os nossos braços se entrelaçaram e as nossas bocas se tocaram, pairam os sons e o odor a sexo...
Sinto o teu cheiro na almofada.
Foi por isso que saíste...?
Silêncio
Sinto o teu cheiro na almofada.
Sei que é tarde, não há nada a fazer, tudo o que não foi dito, tudo o que não foi sentido, tudo o que não foi mostrado, tudo o que não aconteceu, ficará por acontecer...
Não estás...e eu sem ti acordei...
Sabor a Thunderdrum
quarta-feira, 17 de outubro de 2007
Imaginário XIV
Creio que é daquelas que se tentam mimetizar no meio da multidão. Quer dizer, é só uma ideia, não sei. Que mania que temos de olhar para as pessoas, especialmente aquelas que nos habituamos a ver sem nunca lhes tocar, sem nunca ouvirmos a sua voz, nem nunca receber um olhar directo nos olhos... bem, neste último caso nem é bem verdade porque às vezes os nossos olhares cruzam-se de vez em quando e devo dizer que o olhar dela me incomoda. Não é que transpareça maldade ou que demonstre ficar chateada ou importunada. Mas é um olhar tão profundo, penetrante e insistente, como se desafiasse, que tenho mesmo que desviar os olhos dos dela. Chega a dar-me a sensação de que para ela estes olhares nos olhos são um desafio e quem acaba por sentir o incómodo como se da invasão da alma se tratasse sou eu.
Seja como for, estava eu a dizer que a impressão que me dá é que ela se quer fazer confundir com o meio, como se desejasse ser camaleão... até vou mais longe. Quer-me mesmo parecer que se ela pudesse seria mais que camaleão... como explicar? Que se ela pudesse estaria no meio da multidão a observar toda a gente, perfeitamente visível mas sem deixar que ninguém a visse... como se fosse possível...
O que me chama a atenção nela é o facto como ela até parece fazer para repudiar os olhares dela. Acredito que não se apercebe de como acaba por ser alvo de tantos olhares. Olho para todos à minha volta e reparo que todos a olham também e enquanto penso no que ela estará a pensar penso também no que os outros estão a pensar sobre ela, se será o mesmo que eu. Penso ainda quem é que a vê há mais tempo que eu e a analisa há mais tempo e julga compreendê-la há mais tempo e quem é que a vê há menos tempo e nesse “menos tempo” já sabe mais sobre ela que eu, e desses eu sinto ciúme.
Que coisa parva - digo para mim logo a seguir - Que coisa parva sentir ciúme de pessoas que não conheço. Devo estar a ficar lélé - é o que me vou repetindo. E no entanto queria ser só eu a compreender o que ela pensa, sente, quer, sonha, deseja...
Sabor a Thunderlady
Em Fogo 4 - Ser Feliz
Sabor a Carpe Diem
quarta-feira, 10 de outubro de 2007
Imaginário XIII
Lavei as mãos a correr. Peguei no avental ao mesmo tempo que abri o frigorífico e enquanto uma mão tirava o que ia precisar a outra ia enfiando o avental pela cabeça abaixo.
Estava com aquela sensação que faltava qualquer coisa. Revi mentalmente a receita a que já me habituei a fazer olhando para o balcão. Não... tudo a postos. Assim de repente não faltava nada.
Arranjei, cozinhei, preparei. Sempre com a sensação de que faltava alguma coisa. Servi. Sempre a pensar no que faltava.
Servi. Comi. Comemos. Afinal, estava ali. Era para se comer. Antes que ficasse frio. Comemos. Comemos até ao fim. Comemos, repetimos, e sem nos saber bem não nos soube mal.
No fim não soubémos dizer o que faltou. Faltava qualquer coisa. O travo foi diferente, que foi.
Estava lá tudo mas faltou qualquer coisa.
Sabor a Thunderlady
terça-feira, 9 de outubro de 2007
Em Fogo 3 - A Beleza
Sabor a Carpe Diem
sexta-feira, 5 de outubro de 2007
Dois Meses
Há quase dois meses que não publico neste blog...
Serão várias as razões para que isso aconteça, falta de paciência, falta de "espaço mental", preguiça, falta de "lembradura", excesso de confusão, falta de vontade, falta de tempo, excesso de tempo, falta de organização do tempo disponível, etc...
A verdade é que até a linha em que comecei a "postar", a história, não me satisfaz e até aborrece. Porque faz lembrar coisas boas e más, porque me faz "puxar pela cabeça" para arranjar uma ideia cativante, ou porque não me apetece simplesmente escrever sobre o assunto.
Por isso, vou repensar o formato, vou arrumar as ideias e talvez escreva algo que realmente goste.Não sei ainda o que escrever, mas alguma coisa há de surgir...
Algo que me satisfaça, algo que me agrade e, assim o espero, aos leitores do blog.
Sabor a Thunderdrum
quarta-feira, 3 de outubro de 2007
Imaginário XII - adaptação do imaginário de alguém
As casas azuis resplandeciam com os seus telhados azuis que brilhavam e reflectiam a luz azul do Sol azul. As crianças azuis, brincavam alegremente na cidade azul. Os pais azuis iam nos carros azuis para os trabalhos azuis com as suas roupas azuis.
Na cidade azul todos eram azulmente felizes. Os pássaros azuis chilreavam nos ramos azuis do topo das árvores azuis, volta e meia voavam para apanharem minhocas azuis enquanto as "pássaras" azuis chocavam os seus ovos azuis.
Os cães azuis passeavam pela relva azul, rebolando-se de felicidade, perseguindo gatos azuis que miavam, de noite, à lua azul.
As flores azuis deitavam um aroma fortemente azul na primavera, no outono as folhas secas azuis deixavam-se desfalecer a pousar suavemente nos passeios azuis e o manto azul crispava sob os passos dos habitantes azuis da cidade azul.
Na cidade azul todos eram azulmente felizes.
Um dia um forasteiro vermelho entrou na cidade azul. Todos os habitantes azuis olharam para a pessoa vermelha e o medo apoderou-se deles. Os seus longos cabelos vermelhos, os seus trajes vermelhos, os seus sapatos vermelhos... tudo era estranho para os cidadõas azuis da cidade azul.
Cercaram o viajante vermelho com cercas azuis.
O viajante vermelho foi então interrogado ferozmente pelos polícias azuis da cidade azul:
- O que estás a fazer nesta cidade? Tu não pertences a esta história.
Sabor a Thunderlady
segunda-feira, 1 de outubro de 2007
Em Fogo 2 - Compreensão
Nos dias de hoje torna-se cada vez mais difícil estabelecer relações duradouras com outras pessoas derivado de um elevado stress e falta de paciência para compreender o outro. Investir num relacionamento, seja ele romântico ou de amizade, requer tempo, paciência, cedências, compreensão, carinho e, acima de tudo, confiança no outro.
Sabor a Carpe Diem