segunda-feira, 30 de julho de 2007

Vivências... 04


O Gonçalo tem 1,98 centimetros de um sorriso característico de quem nunca o fez de facto, com intenção mas apenas porque o boca e a medicação assim o ditaram.
Nunca houve uma ponta de sentimento possante. Hoje, contra tudo o que sempre lhe conhecemos: chorou...
Pela primeira vez, qualquer um de nós e dos seus colegas anteviu-lhe um sentimento mais arreigado e menos medicamente perturbado... Hoje tornou-se uma qualquer espécie de Homem: sentiu... aliás, ressentiu-se.
Hoje, o Gonçalo, mudou-se.
Foi para um novo Projecto que lhe irá dar novos "utensílios" profissionais e práticos para amanhã, quando os envelhecidos pais já não estiverem por perto, ele poder fazer coisas tão simples como: as compras do mês, aliás, ter dinheiro para as fazer.
Aqui aprendeu a gerir o dinheiro, a fazer as ditas compras, a comer até, menos doces e a fazer um sem número de coisas que achamos tão normais... saber tomar a medicação, fazer diariamente a higiene, a ter horários, a respeitar regras...
E depois aprendeu, tal como nós o inesperado: a ter saudade. A compreender o peso que é ter-se no peito essa saudade e a sentir falta de certas pessoas... A apreciar o conceito e acima de tudo o sentimento puro de amar alguns dos colegas sem qualquer tipo de interesse... A sentir prazer nas conversas do dia-a-dia, das preocupações que passou a sentir com os colegas e que, para seu espanto os colegas tinham com ele...
O Gonçalo começou por fim, a fazer aquilo que muitos de nós ou nunca o fizemos ou já o esquecemos de fazer: a experimentar, a provar, a saborear a vida e o que de bom por vezes, o ser humano na sua vertente mais surpreendente, nos trás a essa vida.
O Gonçalo hoje chora porque tem o receio de que ao sair daqui, daquilo que ele tão carinhosamente apelida de "ninho", perca todos esses "ganhos".
Ainda não compreende que esses ganhos estão nele, permaneceram nele independentemente da sua saída... São, desde já, ele.
"- Vou ter saudades vossas e sei que isso é bom, porque significa que me ensinaram a gostar de vocês e eu aprendi a sentir isso. Mas não compreendo então esta dor que sinto no peito sempre que acordo e penso em me ir embora. Sei que vou para melhor, as doutoras dizem que sim e eu acredito mas, tenho pouca vontade de partir e muita vontade de chorar..."
Na verdade, ele foi-se embora há coisa de uma hora e tal atrás, só ele e os colegas choraram na despedida...
Na verdade, a Nádia que era para estar de férias hoje, adiou a partida para o ver e eu, farei a hora de almoço saindo ansiosamente daqui, a Rosa desapareceu e portanto...
Na verdade também nós estamos a escolher um sitio longe de tudo e todos para fazermos a "nossa" saudade... e a chorarmos sem vergonha... já que aqui, temos de ser "animais de sangue frio" e perdermos um pouco da nossa humanidade (?!)
Na verdade, o que não entendemos, uns e outros, pelo menos na partida efectiva do Gonçalo é que, ele de facto não partiu, permanece apenas de uma outra forma em nós. Não é uma partida é apenas um género de "espera" para todos conseguirmos ver as coisas noutros prismas e darmos tempo ao outro para crescer... e quando ele voltar sabemos que regressa mais maduro e certamente, abrangerá uma visão mais "mundo" do mundo...
Esperemos que alguns de nós, tenham essa capacidade de abrangência e acima de tudo, que relembremos não só quem nos ama mas também a saborear a vida sem deixarmos que mais nada externo (e que não podemos resolver) nos tolde a possibilidade e o dever de sermos de facto, felizes...
Para nós (técnicos) o chegar ao fim de um dia destes implica o retorno a uma Casa em que a única coisa que queremos muito é o podermos abraçar a pessoa amada e ali ficarmos, o tempo que for necessário em silêncio.
Mas a realidade é que:
Para a maioria de nós (técnicos) o chegar ao fim de um dia destes implica, invariavelmente, chegarmos a casa e a estarmos ainda mais sós...
Boa sorte a ti Gonçalo!

sexta-feira, 27 de julho de 2007

“E se fizéssemos uma banda...?”

Tudo começou durante uma conversa normal de fim de aulas, com um simples:
-“E se fizéssemos uma banda...?”
Durante 10 segundos o tempo parou naquela mesa do café do fim da rua...até que alguém disse:
“Boa! Eu toco guitarra!”
As conversas no café, na praia, no pátio e na escola têm agora sempre o mesmo assunto.
Têm entre 15 e 18 anos e são amigos, não sabem tocar nenhum instrumento, mas têm vontade de aprender, de se divertir e de sonhar.
Antes sequer de aprender a tocar, ou de ter um instrumento, o nome da banda já está escolhido, a função de cada um também. Há dois que querem ser baixistas, ou mesmo guitarristas, mas falando entre si chegam à conclusão que precisam também de um baterista e não de dois baixistas, e guitarristas é fácil de arranjar, todos o querem ser...
O mais extrovertido assume o lugar da voz, mesmo que não saiba cantar nem nunca tenha segurado um microfone, nem sequer nalgum bar de “Karaoke” da zona. Se canta bem, não se sabe, mas tem a coragem e a vontade para assumir o papel usualmente mais importante e acaba por ser elegido também como “frontman”.
Depois de tomadas estas difíceis decisões, a escolha de um local de ensaio toma importância nas mentes destes adolescentes. Um estúdio que se aluga à hora, o quarto de um deles, a garagem, que sem carros e sem as ferramentas até tem espaço para todos, a cave de um amigo ou familiar, qualquer destas hipóteses é válida. O barulho que se irá fazer? Os vizinhos que aguentem, mas o melhor é tentar manter o volume baixo.




E os instrumentos?

Um deles já juntou o suficiente nos últimos 2 anos para comprar uma guitarra e um amplificador, outro tem algum dinheiro que não chega, mas arranja maneira de pedir algum “emprestadado” aos pais, o mais novo não faz ideia onde vai arranjar o dinheiro, mas já pensou em trabalhar nas férias do Verão e o mais velho pediu aos pais que estão bem na vida e logo lhe compraram tudo o que ele precisava e mais alguma coisa que nem sequer fazia falta.
Junto com os instrumentos vem uma dúvida...como se tocam?
Os ídolos deles na televisão fazem aquilo parecer tão fácil, mas agora com os instrumentos na mão, parece muito mais difícil...pergunta-se ao primo, mais velho, que até teve uma guitarra eléctrica quando era novo e após algumas indicações, os primeiros sons remotamente parecidos com alguma coisa a que se possa chamar música ecoam no quarto à noite.
Quando se encontram, seja no café ou na escola, exclamam de olhos arregalados:
-“Ontem saiu-me uma cena nova tenho que vos mostrar, tá brutal!!!”



As tardes de Verão são passadas na cave do primo do baixista, o mesmo que lhes ensinou os primeiros acordes, que achou graça aos “putos” quererem formar uma banda. Como ele já tinha usado aquele espaço para ensaiar quando tocou numa banda “punk” quando tinha a idade deles, o local até está minimamente preparado para os acolher
...

quinta-feira, 26 de julho de 2007

vida a cores

- Queres ir ao cinema?
- Não, hoje não me apetece.
- Ok.



- Vamos jantar fora?

- Jantar fora? Não, prefiro jantar em casa, é mais sossegado e sempre poupamos algum.
- Ok.



- Apetece-te almoçar na praia?
- Não, não me apetece. E tu sabes que eu detesto praia.
- Ok.



- Nunca vamos a lado nenhum…
- Como?
- Sim, temos uma vida sem piada nenhuma, nunca saímos…
- Porra, então e de todas as vezes que te sugeri fazermos qualquer coisa e nunca quiseste?
- Sim, é verdade. Mas nunca pareceste suficientemente convicto… se tivesses insistido… se me tivesses feito sentir que querias muito a minha companhia…
- Ok.



- Pareces-me triste. Não queres ir sair? Jantamos, tomamos uma bebida, qualquer coisa…
- Não.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Imaginário II

Há já muito tempo que os dias são todos iguais. Começam com o deitar à noite. O ritual de anos. Abordar os pés da cama. Tirar o roupão pesado, velho, cosido nos bolsos, nos cotovelos. O roupão que eu gosto. Aquele que nunca consegui dar para aos necessitados juntamente com tantas outras peças de roupa.

Há já alguns anos que desistiram de me oferecer ou falar em trocar de roupão. É ele que me liga à realidade. Como um cordão umbilical.

Lembras-te? Foi naquela viagem que fizemos, a nossa primeira viagem, a casa dos teus primos, que me convidaram porque nunca tinhas tido um homem na tua vida. Um homem que te fizesse assim, feliz “assim” e diziam eles que se estavas tão feliz eles queriam conhecer-me. Lembras-te?
Nesse fim de semana prolongado estava um frio de rachar e eu não tinha levado roupa suficiente. O teu primo desencantou este roupão velho que, dizia ele, estava ali para uma eventualidade e ainda bem que nunca se tinha desfeito dele. Não acredito que não te lembres… Lembras-te? O roupão estava-me tão grande que nos fartámos de rir com a minha figura. Nessa noite reunimo-nos a jogar um Trivial, todos sentados no chão da sala, a beber um vinho quase a martelo, daqueles rascos que dão uma ressaca do pior mas a dada altura já nem pensávamos nisso. E tu - lembras-te? – foste-te enroscando em mim, com o frio como desculpa para sentires o meu corpo junto ao teu e acabámos os dois dentro do roupão e os quatro numa galhofa. Lembras-te?

Quando regressámos o teu primo disse que eu podia ficar com ele, que “nos” servia e que “nos” ficava bem e a partir daí todas as noites frias os dois vestíamos o roupão. E dávamos a laçada e andávamos coordenados para todo o lado. E quando acabávamos por cair por desequilíbrio acabávamos a fazer amor – de modo que estávamos quase sempre a desequilibrar. Lembras-te?

Desde que te foste embora que o roupão me está grande. Desde que te foste embora que este roupão é grande, muito grande, porque faltas cá tu. Desde que te foste embora que tenho frio, mesmo com o nosso roupão. Desde que te foste embora que vivo o teu cheiro. Este roupão não é o mesmo sem ti. Não passa de uma casca sem vida onde me escondo da vida.

Há muito tempo que os dias são todos iguais.
Os dias são iguais há demasiado tempo: hoje vou ter contigo.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Vivências... 03


"Não gostava de perder este lampejo de sanidade!"
As palavras caíram ao ritmo de um olhar que se perdia no vazio do branco da sala... não se emocionou... não é seu hábito.
O Rui, 23 anos de toxicodepêndencia, 40 de idade, 1 ano "limpo" profunda e comprometidamente "a frio"... habituou-se ao cinismo do mundo nesses 23 anos, acostumou-se também a não ser gente, a passar pela multidão como se fosse um fantasma e a ver o outro como nada, ou na melhor das hipóteses como alguém que pela morte, agressão, ou roubo lhe desse indirectamente a tão esperada dose!
Rui, 16 anos de saídas e entradas constantes de estabelecimentos prisionais, tem um olhar inquisidor de uma criança que apreende agora o mundo.
Recorda todos os cheiros de África e a visão rápida à distância, de uma mãe que
nunca conheceu e hoje insiste em procurar... Encetou numa demanda, muitas vezes inútil de ganhar o respeito de um pai que, até há 4 meses atrás não o reconheceu como filho... "Temos de pertencer a alguém... e oh Dra. ele tem de entender isso!"
E o sentido de "pertença" de facto... nestes casos não é necessariamente, uma família. É qualquer coisa genética, é uma necessidade...
Não tem qualquer tipo de lembranças da sua vida em 23 anos... "Passei por aqui tantas vezes à procura da dose!" e não reconhece todos que se cruzam com eles... alguns prefere inclusive baixar os olhos e fingir que não os vê "Naquele momento pelo menos, da-me a sensação que nunca se passou, que nunca estive lá..."
"Sabe às vezes tenho a sensação de que nada daquilo foi verdade mas depois, encontro amigos meus dos tempos em que ainda éramos garotos... Sinto uma felicidade grande e depois uma angústia enorme: por um lado eles falam agora comigo e eu gosto de falar e estar com eles mas por outro lado..." o olhar procura-me como se fosse resposta e compreensão da angústia...
O olhar lê-se com facilidade se treinado! O silêncio entre os dois foi de facto, o de uma cumplicidade contida e permitida...
Sei bem a causa dessa angústia Rui porque a tua vida, na tua cabeça, no teu conceito de vida: cristalizou... a deles pelo contrário continuou, têm namoradas/mulheres, filhos e empregos, casas e fins-de-semana com família...
Tu, tens-te... a ti, só, a ti!
Procuras, em vão o agarrar ansioso de uma mão, um abraço, qualquer coisa de humano que não sentiste durante 24 anos... Agora sentes a falta desse contacto como se estivesses privado dele durante esse tempo, mas a verdade que ambos entendemos, é que durante esse tempo nada disso te era interessante... a dose sim!
O choro que fazes de mansinho noite fora ainda te revela que estás vivo, sentes, e mesmo que seja dor isso ainda é prova (por vezes única) de que ainda fazes parte de nós... da nossa raça, daqueles que se dizem humanos e julgam que sentem...
A vida de 24 anos fez-te pagar um preço alto que lança muitas vezes para aquele beco escuro de medo incontrolável... "Nunca poderei ter filhos sabe? E durante tanto tempo isso nunca foi coisa que me ocorresse mas agora... olho os meus irmãos e gostava de um, um assim que não se tornasse como eu..."
Por fim, abandona o meu olhar... os olhos doces fecham-se com a força da contenção que aprisiona algo que, decide, não irá sair... agarra fortemente as mãos à cabeça quase como se a esmagasse... não respira, não produz um único som... e depois quase que gutural, sai-lhe um som de profunda dor... baixo, muito baixo porque o Rui não chora, nunca...
"Vou ficar doente não é? Mais cedo ou mais tarde vou ficar doente... de novo! E vou perder tudo isto de novo!
Esta doença vai revelar-se bater à porta e na busca estúpida de pensar que ainda posso ficar bom, vou andar cheio de medicamentos, ficar mais fraco com tempo... até ao dia em que não me vou lembrar sequer que gostaria de ter filhos... de si... de si... destes momentos passados aqui em que ninguém de vocês que sabe que estou doente não se importa de me agarrar de tocar... Os outros se soubessem..."
O "animal" desfaz-se e endireita-se na cadeira, as mãos tremem e ele esconde-as para não revelarem a fraqueza... repete quase que instintivamente "Não gostava de perder este lampejo de sanidade!"
Partilho-me no silêncio de um discurso calado em que só a noite nos reconhece o diálogo e que profissionalmente digo apenas: Os 23 anos de "semi-vida" dos outros, foram certamente mais pobres do que os poucos de "luz" que teve até hoje e terá daqui para a frente... Neste caso, o passado é importante apenas porque lhe "abriu o peito" e o futuro será interessante se lhe abrir ainda mais o espírito."
Não falámos dos filhos... Não falámos da mãe ou do pai... Falámos por mais meia-hora dele, daquilo que é concretizavel e daquilo que poderá vir a ser...
"Por hoje: Esqueçamos tudo isso! E aproveitemos o dia que corre mesmo neste cinzento-chumbo mas que, apear disso, é vivido e sentido com toda a sua força."
Respondeu com um sorriso aberto: "Sim façamos isso e deixemos as lágrimas então para mais logo... na solidão da noite!"

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Um...Dois...Três...Quatro!

Assim começa este ritmo, com este andamento, seja allegro ou andante, presto ou adagio, largo ou vivace, a marcação inicia o compasso.


Colocar bolinhas por cima de linhas, traços verticais e horizontais, agrupar algarismos, símbolos, notações e anotações, definir entradas, saídas, passagens e mudanças, ritmos, cadências, uniões e separações, organizar quem faz o quê, quando, como e porquê...

É no meio de todas estas operações e processos que surge uma ideia, uma questão que é discutida, analisada, dissecada, testada e experimentada até que agrade a todos os envolvidos e possivelmente aos que mais tarde se envolverão.
Não se pode desistir, insiste-se na melodia, no ritmo, nas vozes, nos instrumentos, no solo ou no refrão, até que o resultado desta "fórmula" seja um conjunto de partes que funcionem como um todo.
Escolher o conteúdo lírico, o título, mais uma volta a ver se tudo está OK, experimentar mais uma alteração, mais uma mudança, mais uma vontade...agora que está pronta, o que fazer com o resultado?

Repetir os gestos, os passos e todos os pormenores mais uma vez, até atingir, não a perfeição, mas o "à vontade" necessário para a apresentação do "produto final".


Todo este processo pode ser complicado ou extremamente simples, depende dos intervenientes e até da interacção entre os mesmo.





Terminado.


Ou talvez não, uma pequena sugestão pode trazer de volta todo o processo...este resultado está sempre disposto a alterações, consoante a liberdade e imaginação do(s) autor(es)...


Tudo isto só para vos dar... Música.










Confesso que fui um pouco apanhado de surpresa com a abertura deste espaço, que há uns bons tempos estava ainda em "arrumações" mentais e "dúvidas" existenciais, o que me fez usar a tecla Delete mais vezes do que o que queria...mas se é para seguir com isto, então vamos lá.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Imaginário I

O primeiro contacto.

Chego, pouso a pouca bagagem.

Olho à minha volta, o olhar prende-se no tecto. Rachas que parecem fendas, fendas que se afastam a uma velocidade tectónica, que os olhos não percebem mas que sei – tenho a certeza – que amanhã estarão pior mesmo que eu não veja que estão pior. Talvez só daqui por meses ou anos é que eu me aperceba que as fendas deram em crateras e que o tecto vá cair. Pode ser que nessa altura eu já cá não more.

Olho as marcas deixadas pelos hóspedes que por cá passaram antes. Demoro-me nos desenhos que ninguém teve o cuidado de limpar, ou simplesmente ninguém quis apagar, como se de uma marcação de território se tratasse.

Dificilmente me vou habituar a este lugar.

Olho as paredes sujas. Mentalmente faço uma lista de coisas a melhorar. Uma limpeza a fundo nestas paredes. Cerzir o colchão. Colmatar as fendas que milimetricamente engordam no tecto. Polir a secretária - está cheia de riscos e vincos feitos, provavelmente, a canivete.

Se vou viver aqui anos o melhor é tornar este lugar o mais aprazível possível. Personalizado. Meu.

Sim, ao menos uma vez na vida terei um sítio só meu. Ainda que para isso tenha que ser aqui.

O primeiro contacto é sempre o mais forte e vinculativo.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Vivências... 02


Só vejo além...

O presente, dizias, não existe!
Só o passado e o futuro.

O presente não existe e ainda bem, recordo apenas todos os cheiros, todos os beijos.
O presente não existe e isso não me é de facto importante, projecto apenas a possibilidade de tudo o que de bom poderei ser, poderemos vir a ser.
O presente não existe e assim, a vivência de agora é mais fácil.
De facto, como o disse hoje pela manhã o Nuno: "Fui tantas coisas que hoje não seria, fiz tantas coisas que hoje não faria mas depois, hoje estou só a construir aquilo que amanhã poderei mudar uma vez que o passado esse, já não o posso refazer!"
Assim é o agora: a transformação da possibilidade de quem pelo menos uma vez num dia, num leve segundo, julgou que tudo estava perdido e que nada havia a fazer...
Nos dias que correm é nesta verdade que assenta a minha sanidade.
E se o Nuno muda e eu vejo a mudança.
Eu mudo ainda que para mim essa mudança seja cega no meu reflexo.
Nuno: não houve possibilidade de hoje lhe dizer que acredito sim!
Que essa "nossa" doença tem cura e que esta estabilidade não é só momentânea... Não tenha mesmo medo de errar... Não é erro, é só aprendizagem para fazer melhor numa oportunidade mais adequada.
Somos o que somos mas, também o que queremos ser...
A mudança será cumprida!

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Vivências... 01


Ontem o Miguel entrou gabinete adentro depois de muito esperar... Tivemos imenso trabalho (para variar) e contas (ainda por cima) para fazer...
Esperou e olhava-me com aquele seu ar entre a espera pacifica e o desespero de querer falar.
Fui-lhe dizendo calmamente: É só mais um bocadinho...
O Miguel é um rapaz com uns olhos castanhos belíssimos e um olhar que tem vindo a entristecer dia para dia, é ainda miúdo apesar dos seus 20 e tais...
Não se apercebeu que para além do excesso de trabalho, a principal razão do constante adiamento se devia ao facto de eu estar a criar coragem para poder fazer o atendimento de forma profissional...
Sabia de ante-mão que iria falar das agressões entre família materna e paterna, da saudade que sentia da mãe que morreu e da qual já não guarda memoria da cara, do seu cheiro...
Entra, senta-se com dificuldade como se o corpo lhe doesse (mas é só a alma), esfrega maquinalmente as mãos que vão suando. Muito. Cada vez mais.
Pergunto-lhe: Então Miguel o que se tem passado?
Continua sem conseguir olhar-me nos olhos e transpira imenso. Não liberta um único cheiro mas sente-se a atmosfera cada vez mais densa...
Começa quase sem voz:
"Oh Dra. ando mal... lembro-me constantemente das discussões dos meus pais com a família... esqueço-me muito da minha mãe... acho que nunca fui bom filho e que nunca tive um pai... assim, daqueles para falar...
Quando sair daqui do Projecto, não sei muito bem o que vai ser de mim... não sei se vou saber gerir o dinheiro... e não quero estar só!
Sabe, sinto-me muito só...
Começou a chorar e eu, já não tinha posição na cadeira...
Sosseguei-o dizendo o que toda a gente sabe:
- Há um imenso mundo dito normal que está endividado... e um mundo ainda maior que está só e não quer estar assim... No dia em que sair do projecto, se viver sozinho vai ter de fazer umas contas à vida, mais ou menos iguais aquelas que já fazemos consigo agora e sim, certamente vão de facto haver dias em que vai estar só e se vai sentir o mais só dos homens... nesses dias aproveite para pensar nas coisas boas da vida, para fazer planos para o dia seguinte e, cometa a loucura de ler...
Riu-se então pela primeira vez na hora inteira... O Miguel não gosta de ler!
- Maus filhos, maus pais, maus amantes, maus irmãos todos somos pelo menos numa dada hora do dia, num dado dia do mês mas depois, se houver amor de facto, daquele que nos altera e nos faz gritar as maiores barbaridades mas também, nos dá a capacidade de perdão constante... enfim, talvez as coisas não corram mal...
Não vai a tempo de fazer nada relativamente à sua mãe, mas ainda tem tempo de olhar para o eu pai de forma diferente e, de se vir a tornar um pai, um dia destes, compreensivo... Tem todas as possibilidades ainda... em si, se as descobrir, se as procurar...
- Dra. não sei se vou ser bom pai... bom marido... quero muito mas não sei... com isto da doença...
- Nunca sabemos Miguel... mas temos sempre de tentar pelo menos fazer o nosso melhor... no fim do dia, talvez o sono seja mais sossegado...
- Mas não é Dra.
- Pois... o meu também não... Mas não me vê baixar os braços pois não?
- Obrigada e desculpe lá... sinto-me melhor. Sim... sinto mesmo!
Esbocei um sorriso e disse-lhe só:
- Ora ainda bem!
Não lhe disse que:
Eu não!
Nesse dia ainda trabalhei mais 4 horas das 12 totais... e quase já não me lembrava disso à noite mas depois, uma lágrima caiu, fui de novo tomar banho que estava de novo com febre e tomei algo... mas não esqueci... ainda assim... nada!


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