domingo, 21 de dezembro de 2008

Imaginário XXXIII

- Acho que ele endoidou de vez - conseguiu ela dizer entre soluços a quem falava ao telefone.

Ah... endoidei, ela nem sabe o que diz, não podia estar a pensar com mais clareza.

- Desculpa, não consigo conter, não consigo falar - era o que do outro lado se ouvia a custo, entre soluços e longos períodos de silêncio. E lá vinham mais soluços e mais silêncios a cada vez que do outro lado alguém dizia calma, vou aí ter contigo, vem ter comigo.

E ele ria, ria que nem um perdido como se alguém lhe tivesse contado a mais hilariante anedota. Conseguia até lembrar-se da história daquele inglês que tinha morrido de tanto rir a ver uma série de televisão e seria uma pena - pensou - se morresse assim, logo hoje. Seria no mínimo irónico, mas é assim que a vida é, irónica.

- Ele só pode ter enlouquecido - saía por entre mais um soluço - ele... ele vem aí...

E ele pegou no telefone e tomou conta da conversa. Que ele (aquele que estava do outro lado da linha) tinha que ir lá ter a casa. Ele (o que supostamente tinha endoidecido) queria falar com eles (ela e ele que estava ainda do outro lado).
- Vá lá, depacha-te, anda que eu não tenho tempo a perder - disse ao desligar sem dar hipótese de resposta.

E ria, ria que nem um doido enquanto cantarolava Hoje é o primeiro dia do resto da minha vida, hoje é o primeiro dia do resto da minha vida.
E ela chorava. Não conseguia controlar os soluços que lhe arrebatavam a respiração e a deixavam sem fôlego, cansada, estoirada e com uma ainda mais incontrolável vontade de chorar.

Enquanto ela se prostrava e balançava que nem uma louca lavada em lágrimas numa ladainha de choro irritante ele cantarolava, ria e ia fazendo as malas.

- Vá lá querida, não fiques assim. A sério!, pensa bem, pensa, esquece as penas, esquece tudo e pensa. Isto foi a melhor notícia que tive em anos. Que tivemos. Todos: os três. Vá, canta comigo, hoje é o primeiro dia do resto da minha vida...

E seguia a cantarolar num riso de felicidade que passava o limiar do infantil para o histérico.

- Como podes dizer isso - gritou ela tantas vezes até ficar rouca - como? E alternava o choro, a ladainha e os gritos que já nem se ouviam por não ter voz.

- Eu não endoideci, aliás, devo dizer-te que estou mais lúcido que nunca, louco andava eu feito zombie na vida à espera da morte. Vivo estou eu agora. E se rio é porque vivo.

Entretanto a campaínha toca. Ele vai abrir a porta enquanto lhe diz, carinhosamente, para ela se compôr e não ser dramática.

- Entra e senta-te, vê lá se me ajudas a compô-la que está para aí numa crise de choro que até parece que morreu alguém - e ditas as palavras, que ele próprio ao dizer ouvira, ria ainda mais e mais descontroladamente - Ai que morro de tanto rir - e ria ainda mais.

Ele (o que acabava de chegar) nem sabe por onde começar nem o que pensar. A casa sempre antes tão direitinha num reboliço. Roupas, papeis, livros pelo chão.

- Entra lá, não temos tempo a perder, não te mostro a casa porque sei que já a conheces mas antes que também tu me aches louco deixa-me dizer-te que não te vou matar nem nada que se pareça. Bebes alguma coisa? Um whisky? Cerveja? Chá? Acompanha-me num whisky velho, faz-me o jeitinho, afinal de contas já partilhámos outras coisas - e dito isto voltava a rir como se tivesse dito a piada mais hilariante do mundo. Ai que não posso rir tanto, ainda morro - e voltava a rir da mesma piada que não se cansava de fazer.

Ela soluçava no chão, já em soluços baixinhos, cansados, os olhos inchados, o rímel que esborratava a face, o desespero de quem já nem procurava um lenço para enxugar as lágrimas. Ele (o que acabava de entrar) baixou-se para a abraçar e nesse instante ele (o que ria) diz-lhe em tom sério e sem rir:

- Vou-me embora. (E dito isto ela rompia de novo em lágrimas exaustas, tantas que lhe ardiam os olhos e a cara, tantas lágrimas que já chorava em seco) Vou-me embora, sei de tudo. E o que interessa aqui é que se durante anos fui corno e até me importava mas sempre esperei que ela mo dissesse, hoje não me importo e até agradeço. Agradeço, sim. Sabes, numa questão de segundos tudo se tornou relativo. Com a aproximação da morte tudo se torna relativo, mas (sussurrou ao ouvido dele, o que acabava de chegar) cada um tem a sua hora e só nessa hora percebe a relatividade. E a minha chegou. E sinceramente? Não me importo. Não me importo e estou felicíssimo, creio que vou viver mais estes dias que me restam do que vivi os mais de 40 anos até aqui.
Estava preocupado com ela, sabes, recebeu mal a notícia. Creio que para ela tudo seria imutável: eu cá em casa, tu no hotel ou aqui ou onde quer que fosse e assim seria para sempre. Mas as coisas mudam. Não quero que ela fique só. Nem quero que ela tenha pena de mim, nem tu sequer.

Bebia mais um gole de whisky.

Não é pena que quero, quero que entendam que não ensandeci, apenas tomei consciência naquele minuto do que queria, e o que quero é sair daqui, desta vida - e nisto ria de novo. Sabes, isto entretanto torna-se quase ridículo, porque "vida" e "morte" tomam outros sentidos para mim agora, mas não para vocês. Vá lá, não me olhes com essa cara de espanto. Peço-te que cuides dela. Que venhas cá para casa. Podem vender esta e comprar a vossa, tanto me faz, desde que fiques com ela. Tu e eu somos os pilares da vida dela, eu sei, e por isso nunca me intrometi entre vocês, mesmo sendo o marido, do mesmo modo que - e ria de novo à gargalhada - nunca te meteste entre nós, se é que isso foi possível, nunca te meteste entre nós porque eu não te trouxe e porque não forçaste. Mas - e bebia mais um gole - isto tudo para te dizer que vens para cá. Hoje.

Beijando-a na testa com um imenso carinho saiu de casa a cantarolar hoje é o primeiro dia do resto da minha vida e já não a ouviu dizer sumidamente amparada nos braços do outro o amo-te, não te quero perder, não morras, não estou preparada para te perder para sempre que ela conseguiu dizer antes de desfalacer.

E saiu feliz porque finalmente ia viver nos poucos dias que lhe restavam de vida.

3 sakês:

mimanora disse...

Thunderlady, Venho cá pouco mas estou a gostar.
Esta história fez-me lembrar uma que conheci de perto (deve haver muitissimas) e uma que se estava a preparar para acontecer, não sei se aconteceu ou se ainda irá acontecer...
Achamos que são os homens os autores destas histórias mas...

Teresa disse...

Vanda, estou sem palavras...

Li, reli. Não consegui rir como o corno... Fiquei-me a secar as lágrimas da senhora.

Faz-me lembrar aquela velha história do amor despertado pelo abanão da vida. Nem sei...

Não tenho mais palavras.

Beijo grande.

Grande texto, sim.

*

V. disse...

Mimanora ainda bem que tens estado a gostar, já agora, se tiveres algum pedido especial, a casa tenta fazer o "prato" ;)

Eu creio que estas histórias acontecem indiscriminadamente com protagonistas homens ou mulheres. Aqui neste conto específico o que quis destacar não foi a infidelidade ou a traição (que são as duas abordadas de modo diferente numa frase) mas o facto de como as coisas podem ser vistas de outros ângulos e de como um mal se veio tornar uma mais valia.

Todos nós podemos ser autores / protagonistas de histórias destas: somos humanos.

Ovita, obrigada pela tua crítica. Confesso-te uma coisa: quando o escrevi foi no riso dele que me revi. Hoje quando reli vi-me nas lágrimas dela.
nem eu mesma sei como ler este texto...

Beijinhos meninas!


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