segunda-feira, 23 de julho de 2007

Vivências... 03


"Não gostava de perder este lampejo de sanidade!"
As palavras caíram ao ritmo de um olhar que se perdia no vazio do branco da sala... não se emocionou... não é seu hábito.
O Rui, 23 anos de toxicodepêndencia, 40 de idade, 1 ano "limpo" profunda e comprometidamente "a frio"... habituou-se ao cinismo do mundo nesses 23 anos, acostumou-se também a não ser gente, a passar pela multidão como se fosse um fantasma e a ver o outro como nada, ou na melhor das hipóteses como alguém que pela morte, agressão, ou roubo lhe desse indirectamente a tão esperada dose!
Rui, 16 anos de saídas e entradas constantes de estabelecimentos prisionais, tem um olhar inquisidor de uma criança que apreende agora o mundo.
Recorda todos os cheiros de África e a visão rápida à distância, de uma mãe que
nunca conheceu e hoje insiste em procurar... Encetou numa demanda, muitas vezes inútil de ganhar o respeito de um pai que, até há 4 meses atrás não o reconheceu como filho... "Temos de pertencer a alguém... e oh Dra. ele tem de entender isso!"
E o sentido de "pertença" de facto... nestes casos não é necessariamente, uma família. É qualquer coisa genética, é uma necessidade...
Não tem qualquer tipo de lembranças da sua vida em 23 anos... "Passei por aqui tantas vezes à procura da dose!" e não reconhece todos que se cruzam com eles... alguns prefere inclusive baixar os olhos e fingir que não os vê "Naquele momento pelo menos, da-me a sensação que nunca se passou, que nunca estive lá..."
"Sabe às vezes tenho a sensação de que nada daquilo foi verdade mas depois, encontro amigos meus dos tempos em que ainda éramos garotos... Sinto uma felicidade grande e depois uma angústia enorme: por um lado eles falam agora comigo e eu gosto de falar e estar com eles mas por outro lado..." o olhar procura-me como se fosse resposta e compreensão da angústia...
O olhar lê-se com facilidade se treinado! O silêncio entre os dois foi de facto, o de uma cumplicidade contida e permitida...
Sei bem a causa dessa angústia Rui porque a tua vida, na tua cabeça, no teu conceito de vida: cristalizou... a deles pelo contrário continuou, têm namoradas/mulheres, filhos e empregos, casas e fins-de-semana com família...
Tu, tens-te... a ti, só, a ti!
Procuras, em vão o agarrar ansioso de uma mão, um abraço, qualquer coisa de humano que não sentiste durante 24 anos... Agora sentes a falta desse contacto como se estivesses privado dele durante esse tempo, mas a verdade que ambos entendemos, é que durante esse tempo nada disso te era interessante... a dose sim!
O choro que fazes de mansinho noite fora ainda te revela que estás vivo, sentes, e mesmo que seja dor isso ainda é prova (por vezes única) de que ainda fazes parte de nós... da nossa raça, daqueles que se dizem humanos e julgam que sentem...
A vida de 24 anos fez-te pagar um preço alto que lança muitas vezes para aquele beco escuro de medo incontrolável... "Nunca poderei ter filhos sabe? E durante tanto tempo isso nunca foi coisa que me ocorresse mas agora... olho os meus irmãos e gostava de um, um assim que não se tornasse como eu..."
Por fim, abandona o meu olhar... os olhos doces fecham-se com a força da contenção que aprisiona algo que, decide, não irá sair... agarra fortemente as mãos à cabeça quase como se a esmagasse... não respira, não produz um único som... e depois quase que gutural, sai-lhe um som de profunda dor... baixo, muito baixo porque o Rui não chora, nunca...
"Vou ficar doente não é? Mais cedo ou mais tarde vou ficar doente... de novo! E vou perder tudo isto de novo!
Esta doença vai revelar-se bater à porta e na busca estúpida de pensar que ainda posso ficar bom, vou andar cheio de medicamentos, ficar mais fraco com tempo... até ao dia em que não me vou lembrar sequer que gostaria de ter filhos... de si... de si... destes momentos passados aqui em que ninguém de vocês que sabe que estou doente não se importa de me agarrar de tocar... Os outros se soubessem..."
O "animal" desfaz-se e endireita-se na cadeira, as mãos tremem e ele esconde-as para não revelarem a fraqueza... repete quase que instintivamente "Não gostava de perder este lampejo de sanidade!"
Partilho-me no silêncio de um discurso calado em que só a noite nos reconhece o diálogo e que profissionalmente digo apenas: Os 23 anos de "semi-vida" dos outros, foram certamente mais pobres do que os poucos de "luz" que teve até hoje e terá daqui para a frente... Neste caso, o passado é importante apenas porque lhe "abriu o peito" e o futuro será interessante se lhe abrir ainda mais o espírito."
Não falámos dos filhos... Não falámos da mãe ou do pai... Falámos por mais meia-hora dele, daquilo que é concretizavel e daquilo que poderá vir a ser...
"Por hoje: Esqueçamos tudo isso! E aproveitemos o dia que corre mesmo neste cinzento-chumbo mas que, apear disso, é vivido e sentido com toda a sua força."
Respondeu com um sorriso aberto: "Sim façamos isso e deixemos as lágrimas então para mais logo... na solidão da noite!"

4 sakês:

wednesday disse...

Muito sincero e natural... Parece um romance em poucas palavras. História da vida igual a tantas outras, mas que nos prende a ler... :)

Anónimo disse...

Por que, julgo, é real... e temos uma atracção pelo real no sentido vivido! Acho...

V. disse...

A vida é para ser vivida enauqnto cá estamos, certo?

Como te disse quando publicaste, creio que ele deve viver o seu dia-a-dia. Morrer está latente em cada respiração que se dá.

Ele está vivo e é isso que interessa no momento, viver.

Anónimo disse...

A vida é a tal coisa que tomamos por certa até ao momento em que algo extremo nos prova que afinal NÃO, não é bem assim...

Aqui tratamos do agora, do hoje e de toda a possibilidade que é viver nesse hoje... amanhã, logo se vê!


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