sábado, 18 de outubro de 2008

A avó espatifou outra vez a canela.

A outra espatifadela, a que fez há mais de um mês, está lá ainda. Sim, aquela que fez quando tropeçou nas escadas da entrada, bateu com a canela no degrau e agarrou-se à roseira - Ó D. Natália, não tinha sítio melhor para se agarrar? Ai ai ai... - mas já não adianta, nesta idade não aprende, só desaprende - sim, essa, ainda lá está.

A crosta, que já tem mais de 4 semanas, ainda não caiu, está por um fio, digo eu que não sou enfermeira nem médica mas que podia ser não fosse dar-se o caso de não poder ver sangue - e muito bem vou eu que me aguento sem vomitar - e por um fio ficará enquanto quiser que eu não vou arrancar nada, arrancaria se fosse minha mas é dela e a pele dela tem quase 88 anos - filha, já tenho cento e quantos, pergunta ela, tens 87 fazes 88 em Dezembro - mas ela já não sabe que é Outubro, as estações são agora todas iguais - a minha mãezinha é que morreu com cento e quantos tu é que sabes, ah 104 , pois foi , e tanto que ela sofreu na vida.

E a conversa é sempre a mesma e resume-se sempre ao mesmo. A mãe dela que morreu com 104 anos e que toda a vida esteve lá para tratar dela e não está agora, agora que ela tanto precisa da mãe porque está velhinha e a mãe é que devia lá estar para tomar conta dela como esteve toda a vida e não está agora, a mãe que sempre tanto sofreu e sempre a protegeu e agora não protege porque morreu, morreu há 10 anos mas ela já não sabe quanto tempo são 10 anos, podiam ser 10 minutos - a dor, essa, é a mesma.

E a crosta de há mais de um mês lá está. E ainda não caiu e está lá outra. Não, não outra crosta, outra ferida. Mais ou menos 10 cm acima.

Foi ontem de manhã. Quando lá cheguei estava ela ainda de robe. De robe, Não tens frio? Mas ela estava meio atordoada, percebi que estava a comer - a boca cheirava a migas de café, as migas que ela faz com o pão que deixa endurecer com medo que acabe, com receio que nos esqueçamos dela e não lhe levemos pão fresco - come o pão, nós trazemos mais amanhã - mas todos os dias é a mesma coisa, já não vale a pena, nesta altura ela já não aprende, só desaprende e nós temos que ir aos poucos desaprendendo com ela. Não filha, quer dizer, olha... e vi a perna.

Custa sempre olhar e ver a perna dela espatifada. Não sabia se havia de começar por desinfectar, por pôr gelo, pelo quê. Com sangue frio tirei o penso da crosta mais antiga, precisava de ver se estava aberta outra vez. O receio - não sei se da possível imagem da ferida aberta ou se das consequências da ferida ter aberto - remoeu-me o estômago. Não. A crosta lá estava, resistente e forte e bem agarrada. Pus tintura. Pus tintura como te vejo a fazer na outra, disse-me ela com orgulho. Fizeste bem, é assim mesmo, tentava eu disfarçar o estômago ruim.

O procedimento foi o que se repete há um mês. Desinfectar, pôr um cicratizante, cobrir.

Agora vais ficar com gelo na perna, este inchaço tem que desaparecer.

Deixei-a a acabar o pequeno almoço. Uma manta a cobrir os ombros, uma perna esticada e gelo, um olhar meiguinho e um sorriso na cara - sempre e sempre e todos os dias um sorriso. Ela diz que a melhor hora do dia é a da manhã, em que me vê e lhe encho o dia e falo com ela e a faço rir.
No fim a perna dela lá está, espatifada, a perna que já tem 87 e faz 88 anos em Dezembro mas que não sabe que estamos em Outubro porque as estações parecem todas iguais, a pele que já tem 87 anos e faz 88 em Dezembro mas que não sabe que estamos em Outubro porque as estações parecem todas iguais, o corpo que está velhinho e já não cura, só descura, a cabeça que está velhinha e já não aprende, só desaprende.

Porque a esta altura as estações, essas, são todas iguais.

7 sakês:

Canela disse...

É com carinho e dedicação... que se curam estas "crostas", mesmo com o estomago "ruim"!

Bom fds.

Ana Oliveira disse...

Que saudades da minha avó...que deixava o pão endurecer para nos dizer que era tão poupada que nada se estragava...e do cheiro e sabor das migas de café que ela comia e me dava (ás escondidas, que as meninas pequenas nãqo podem tomar café)...
Que saudades...

Carlos Rangel disse...

Gostei do que escreveste, apesar de me ter dado um ligeiro aperto no coração.... :S Porque como tu dizes, " A cabeça já só desaprende..." Bjs! Agora vejo-te por aqui, certo? ;)

Carpe Diem disse...

Não posso deixar de concordar mais com este texto, principalmente porque uma das minhas avós (a materna) anda assim também... ainda pior, esta acamada e com vertebras partidas e mal anda...

As pessoas quando vão para a idade esquecem o que foram e perdem a esperança de ser mais alguma coisa, mas tu aproveita cada pedacinho da vida porque é sempre precioso.

Beijos grandes do fã que adora ler-te:
Nuno.

Cati disse...

Bela netinha! Preserva essa tua avó, que é um tesouro que tens na tua vida.

Um beijo grande*

pensamentosametro disse...

Que sorte tem a avó.

bjos


tita

V. disse...

Canela, Ana, é sem dúvida com muito carinho.

Carlos, cada vez que leio aperta-se-me o coração também. Sim, agora é por aqui que me lês :) Obrigada!

Carpe, aproveito cada pedaço que é como dizes muito precioso. Custa muito acompanhar a desaprendizagem, custa memso muito.

Obrigada, fã :) Somos fãs um do outro!


Cati, obrigada :)

Tita, a avó tem sorte e tem um feitio lindo e todos os dias me diz que me adora...


A todos: apesar de ser em termos de sangue a avó do Thunder, é para mim mais que uma avó, é uma amiga, é uma filha, é uma companheira. Tenho (temos) muito carinho por ela.
Beijinhos a todos


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