terça-feira, 18 de novembro de 2008

Extra


O Marco tinha uns olhos azuis profundos e francos. Um sorriso agradável e sincero. Era um portento de generosidade como vi em poucas pessoas.

O Marco teve uma uma vida conturbada. Chegou até mim num dia de chuva: cansado, dorido, só.

O Marco tornou-se meu utente. Durante meses partilhou comigo a sua vida. Mais tarde a sua alma e, no fim, os seus medos.

Nunca chegou a saber quais eram os meus. Tínhamos uma relação profissional e as coisas ficaram assim.

Saiu da Instituição onde eu trabalhava por razões que nem ele, nem eu concordámos mas que o meu superior achou serem as melhores.

Ele nunca chegou a saber a quantidade de discussões que essa saída gerou entre mim e a minha chefia.

Creio que nunca questionou que foi graças a essas constantes divergências (sobre ele e outros casos) que mais tarde, também eu saí da Instituição e o senti como alivio.

Telefonava-me muitas vezes. Umas apenas para partilhar o dia, outras para me pedir a opinião e outras ainda, para me pedir orientação.

Nunca chegou a ter conhecimento que muitas vezes eu não partilhava o meu dia com ninguém, que eu não tinha quem me desse uma opinião e, acima de tudo me proporcionasse uma orientação.

O Marco tinha uma doença da qual ele sabia que nunca iria recuperar, da qual ele não falava quando tinha uma nova namorada e, sobretudo, a qual ele tentava deixar cair no esquecimento de si próprio.

Foi uma doença "ganha" nos excessos de uma vida que na altura ele tentava deixar para trás.

O Marco morreu. Deu entrada no Bloco operatório e disse o médico: "Já não havia nada a fazer!"

No momento em que a família me deu a noticia estava frio, chovia lá fora e eu por momentos senti que o mundo parava ali de alguma forma...

Dei-me conta das discussões e da futilidade de algumas delas. Dei-me conta das frustrações e da inutilidade de muitas delas. Dei-me conta da quantidade de energia gasta em alguns casos/pessoas e do quanto improfícuo foram na maioria delas.

desnecessária,
escusada,
sem préstimo,
incapaz,

inábil,
frívola,
vão,
leviana...

A vida por vezes É isto! E outras vezes a lista continua...

Cheguei assim, de forma abrupta, ao fim da minha opção profissional...

Há que saber quando já não aguentamos mais, quando já não conseguimos fazer mais... Os homens/mulheres não se medem aos palmos mas, por vezes, a humanidade e o que nos resta dela: sim!

4 sakês:

Majo disse...

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.

(Fernando Pessoa)

Por vezes temos que fazer escolhas, tomar decisões. Difíceis, dolorosas. E também por vezes temos de levar um "empurrão" da vida. E caímos. Mas levantamo-nos e avançamos... e mudamos.

Nestas ocasiões penso sempre que tinha de ser. Era tempo de fazer a travessia...

Anónimo disse...

Respondo então com um dos meus poemas favoritos e ao qual, não raras vezes, regresso sempre que preciso de fazer então, a tal travessia:

"Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem a porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És toda a certeza, já não sabe sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa velha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pensa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertam ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
Preferiam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é um ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Outro poema, desta feita, Drummond de Andrade, aquele em que, na minha humilde opinião, o coração é menor, muito menor que o mundo. Onde questiono muitas vezes as minhas (individuais) relações conflituosas com as do mundo, com uma perspectiva anti-romântica porque por vezes É apenas isso que o mundo e as gentes são.

Temos também aquilo que os conhecedores de poesia chamam de anti-lírica convencional.

Mas o que ele mais me diz é porque exemplifica como a linguagem coloquial e as imagens directas podem ser altamente expressivas, no conhecimento da necessidade de perceber que a vida é uma ordem, sem mistificação, sem ilusões vãs, com sobriedade, clareza e desencanto irónico, amargo, embora, nesta altura da minha vida: não resignado.

Bem ou mal, a travessia impõem-se!

Ana Oliveira disse...

"Falar é completamente fácil quando se têm em mente as palavras que expressam a nossa opinião.
Difícil é expressar por gestos e atitudes o que realmente queremos dizer, o quanto queremos dizer, antes que a pessoa se vá"

Drummond de Andrade

Anónimo disse...

"Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim."

Drummond de Andrade


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