quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Imaginário VIII

Mais um dia de trabalho. Mais um? Não, não mais "um".Rafael chegou cedo - como em todos os dias. Extremamente pontual na chegada e nunca preocupado com a hora da saída.
A calma dele, aquela calma que fazia com que tivesse sempre um bom desempenho, aquele sorriso tímido que arrancava sempre uma resposta favorável, o modo assertivo de falar... Muitos colegas o invejavam pela proximidade distante que mantinha, sem saberem que não era forçada, era característica do seu feitio. Sem saberem o quanto ele gostaria, secretamente, de ser mais sociável, mais extrovertido, menos calado.

"Mais um dia de trabalho",
pensou Rafael,
"vai ser só mais um dia de trabalho, ninguém se vai lembrar, não terei que fingir. Só espero ter a prenda que quero".

"Parabéns Rafael!"
Gritaram todos os colegas quando ele entrou na sala do café. Seguiram-se os abraços, as pancadinhas nas costas, as piadas.
"Hã, mais um ano.. menos juízo, já se sabe"
"Então, a tua gaja? Embrulhou-se só para ti?".

Estava tramado.

"Rafael, então, pá? É só mais um ano, pá, um sorriso é só o que se pede, homem! Parece que vieste para um funeral, caramba!"Rafael sorriu, forçado. Precisava de um canto para se enfiar, onde pudesse estar sozinho. Casa de banho. Na casa de banho pode sempre estar-se sozinho. Entrou. Escolheu a divisória mais afastada da porta. Sentou-se na sanita, trancou a porta. Pôs os pés para cima. Pegou no portátil e começou a trabalhar. Era escusado. Ia falar ao chefe. Não podia estar assim.

Saiu da casa de banho. Pousou o portátil em cima do balcão, abriu a torneira. O barulho da água acalmava-o. Arregaçou as mangas da camisa, inclinou-se para a bacia, olhando sempre olhos nos olhos no espelho. Olhando-se nos olhos. A si próprio.

"O que andas a fazer, Rafael?"
perguntou-se enquanto mergulhava a cabeça debaixo da água que corria, fria.
"O que andas a fazer?"

Secou-se. Aquela situação andava a arrastar-se há demasiado tempo. Já nem sabia onde estavam.
O que começou com um beijo fugaz na sala das fotocópias havia quase 2 meses tornou-se fogo, queimava, prendia e libertava e ele não sabia como tinham chegado ali. Já não sabia se era por vício. Já não sabia se era por curiosidade. Só sabia que o desejo da carne era insuportável. A necessidade de a ver, falar com ela. A necessidade de a tocar, de a sentir.
Tinha que falar com ela. Porque para ele não passava de carne: ela dava-lhe o melhor sexo que ele alguma vez tinha tido, sem drogas, sem álcool, sem nenhum tipo de subterfúgio. Sexo, bom. Não, bom seria pouco. Sexo muito bom, como nunca tinha pensado que existia. Era apenas isso. O resto não estava programado.
Ele queria uma mulher "normal". Dona de casa. Boa mãe, com valores. Ao mesmo tempo não queria pensar isto, mas para ele era incompatível que ela fosse excelente na cama e boa mãe de família. Ela queria ter duas: a Marta para aquele sexo do outro mundo e uma rapariga que nem precisava ser linda e boazona, bastava que fosse meiga, inteligente e boa dona de casa - como a mãe dele.

Marta abordou-o no corredor, quando ele vinha ainda a secar o pescoço com o toalhete de papel:
"Preciso falar contigo".

Rafael empalideceu. Encostou-se à parede. Não era de rezar, mas rezou. Rezou porque aquilo era apenas sexo. Nem paixão havia. Sexo. Uma queca fabulosa, um cigarro no fim, o banho. O"Até amanhã, no escritório"sem um beijo sequer.
"Estou grávida."

(Originalmente publicado aqui, no Cai de Costas)

6 sakês:

Flávio disse...

Uau!!!

pensamentosametro disse...

Parabéns grande texto, até o factor surpresa.

Tita

Anónimo disse...

Eh lá... hoje é a minha vez de dizer... Sem palavras!

V. disse...

Obrigada :)

Carpe Diem disse...

Espantoso... quase me pareceu daqueles filmes cujo final é um imenso murro no estômago...por vezes são precisos textos destes para alertar algumas pessoas.

Continua assim que ja vi q este blog vai longe :)

V. disse...

Carpe Diem, obrigada pela tua crítica, gostei de imaginar a sensação que tiveste :)


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