quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Imaginário XIX

Ela era uma miúda esquisita. A sério que era, se vocês a vissem também iam achar o mesmo. Eu sei que pessoas diferentes têm opiniões e gostos diferentes mas acho que iam concordar.

Pela aparência teria quê... uns 19, 20 anos. Pela aparência devia andar por aí a nadar em dinheiro. Roupinhas de marca, tudo do bom e do melhor. Carrito próprio e sem querer ser má língua era um carro bonzito, não era um chaço qualquer.

Tinha o seu grupo de amigos, igualmente esquisitos e igualmente aparentemente abastados, mas para ser sincera ela não parecia muito enquadrada nesse grupo.

Bem, eu via-a às vezes no bar. Nunca falei com ela mais do que um "com licença" ou um "podes passar-me o coiso dos guardanapos?". Ela tinha assim um olhar que... sei lá! Os olhos dela entravam para dentro dos nossos e liam-nos a alma. Claro que era arrepiante, né?

Começou a circular na faculdade (a rapariga até tinha boas notas) que ela vinha de famílias ricas, que não batia bem, que o pai andava em negócios obscuros, enfim, os boatos do costume.

Aos poucos foi-se afastando do grupo com quem se dava. Começaram os rumores que à noite "estudava anatomia no técnico" e de dia "dedicava-se à jardinagem e transformação de produtos herbícolas".

Um dia não apareceu na faculdade.

Quatro dias depois, uma segunda-feira, a senhora da secretaria (nunca ninguém sabe o nome delas, são sempre as "senhoras") contacta o regente do departamento de Física. Fiquei a saber porque ia entrar na biblioteca na altura em que ela vem com o que parecia ser um e-mail imprimido na folha que ela levava na mão e acenava para ele, mais branca que a folha.

Claro que fiquei a cuscar. Não era todos os dias que ia à biblioteca daquele departamento e muito menos que havia agitação.

- Dr. Filipe... Ai Dr. Filipe... já sabemos da Claúdia.

Nem consigo descrever o olhar do Dr. Filipe para a senhora da secretaria. Se eu conseguisse, se eu tivesse palavras para dizer o que é possível acontecer num microssegundo... O Dr. Filipe ficou aliviado, feliz, desvanecido, branco, transparente e desmaia. Isto, num microssegundo.

Enquanto a senhora da secretaria pedia ajuda e o pessoal vinha a correr ver o que se passava eu peguei na folha de papel:

"Estamos em 20 de Dezembro. Este ano não vou ser capaz. O peso que trago comigo é muito e leva-me para o fundo.

Não consigo, posso ou quero desfazer-me dele a tal ponto que é ele quem me desfaz.

Hoje, finalmente, ganho coragem, deixo-o desmembrar-me e permito-me dissolver naquilo que um dia foi a minha vida.

Por favor, avise o Dr. Filipe . A caixa de mail dele está cheia, em casa não atende e o telemóvel vai sempre parar ao gravador.

Avise-o o mais depressa possível pois a nossa experiência precisa de ser seguida.

Obrigada, Claúdia, aluna nº45330F, turma 3, Astrofísica
"


Enquanto isto acontecia na faculdade já a polícia entrava em casa dela e o médico legista tirava o seu corpo da banheira onde tinha cortado os pulsos. Ao lado jazia uma aparelhagem que tocava incessantemente a mesma música e um copo de vinho do porto, quase vazio.

E agora, enquanto o Dr. Filipe deita, visivelmente abalado, um punhado de terra sobre o caixão, enquanto olho para quase toda a faculdade em peso em redor desta campa, agora que já sei parte do que se passou, sinto-me indescritivelmente mal, egoísta, fútil. Na minha vidinha que continua não tive espaço, tempo ou vontade de sequer querer perceber porque é que ela parecia uma miúda esquisita.

E numa culpa consumista que me martelava a cabeça não conseguia deixar de pensar que nunca tive tempo de saber que ela já não tinha a quem deixar um bilhete.

5 sakês:

ThunderDrum disse...

...

Carpe Diem disse...

Simplesmente assombroso... sabes, as pessoas por vezes tendem a afastar-se daquelas que parecem "estranhas", contudo essa estranheza pode ser um grito de alerta e um pedido de ajuda, normalmente ouvido tarde demais...

Por cá cortam os pulsos mas, nos EUA, desatam aos tiros uns aos outros e depois matam-se... formas de reagir ao mesmo, ou seja, a falta de capacidade para entender o Mundo ou as mudanças que o corpo e a mente sofrem.

Beijos
Nuno.

wednesday disse...

Isto toca-me porque tive uma amigo (não muito chegado, mas o suficiente) que se suicidou.

São sem dúvida situações horríveis.

Só não gostei da parte do estudar anatomia no Técnico:P tou a gozar, sei bem do que se trata.

V. disse...

Isto não deixa de ser um imaginário. Toca o real (mas.. o que não toca?) mas é imaginado.

Mas confesso, fiquei com muita pena da Claúdia...

pensamentosametro disse...

É, temos que aprender a ver para além do que está à vista.

Bjos

Tita


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