quinta-feira, 6 de março de 2008

Vivências 19...

Conheci o Liam num dia de nevoeiro intenso sobre ambos os terraços, o dele da avó dele,
e o meu, precisamente da minha avó. Deveriamos ter uns 7 ou 8 anos, nascidos, portanto,
no mesmo ano "dourado" (quase de bijuteria) pós revolução.
Durante alguns dias, limitámos-nos a olhar-nos por cima do muro, que fazia a separação
entre os dois rés-do-chão. Recordo o seu cabelo liso, louro e os seus olhos de azul profundo
era igual ao pai... mais baixo, claro!
Anos mais tarde ele diz que se recorda apenas do sorriso rasgado que parecia abarcar
o mundo - confesso que fico algo orgulhosa mas, ao mesmo tempo, também acho que
era tão catita com aquela quantidade enorme de remoinhos na cabeça e tinha uns olhos
tão vivos que não contenho o comentário e digo-lhe:
- Bolas, só isso?
Claro que o Liam se riu e abanando gentilmente a cabeça disse:
- Não, mas o resto tu já sabes, seria só alimentar-te o ego!
Faço sinal afirmativo e continuamos a recordar...
Nesses dias em que nos observavamos a vida era simples (como creio que é sempre em criança),
eu espreitava muitas vezes "à socapa" o que ele fazia e ele fingia que não me via e fazia
o inverso ignorando-o de propósito também.
Um dia colocou-se em cima do muro da minha avó e perguntou-me:
- Tenho aqui Tulicreme, queres? ... Só tenho 1 colher mas nem trouxe pão!
Aquilo que, à priori, poderia ter sido visto por uma invasão de território, afinal estava no MEU
muro, soou-me de repente a música, daí respondi-lhe prontamente:
- Claro que sim!
Confesso que, nessa altura, era mais despreocupada e MUITO mais fácil de contentar... Pena
não ter assim permanecido e só ter desenvolvido um pouco mais de sentido de humor!!!
Nesse dia portanto, comemos uma caixa inteira de Tulicreme que não deu bom resultado
no dia a seguir, mas para ser verdadeira, não me queixo. Falámos sobre coisas fantásticas,
das histórias dos trabalhos dos nossos pais, da maravilhosa colecção que eu tinha de carimbos
do emprego da mãe e da extraordinária colecção que ele tinha de borrachas de cores, tamanhos
e CHEIROS diferentes. Viamos, ao pormenor, todos os berlindes que tinhamos reflectidos ao sol,
notávamos em todas as nuances que eles nos ofereciam nos vários tecidos que lhe colocávamos
por baixo e desmontávamos/montávamos infinitamente os nossos triciclos para os fazermos
mais rápidos... Claro que, nas descidas, sem travões, nem sempre o mais rápido era o mais
feliz mas, certamente, o "escavacado" de nós dois... Não havia problema, nessa altura as
"feridas" curavam-se com muito mais facilidade: soprando e dando um beijinho.
No Inverno, faziamos uma tenda de índio onde tomávamos intermináveis chás e umas
bolachas que já não existem. E no Verão, estendiamos as nossas toalhas, tomávamos
prolongados banhos no tanque de lavar roupa das nossas avós e, estendiamos-nos preguiçosamente ao sol de mãos dadas.
Era apenas com o Liam que me sentia bem naquela idade e julgo que, o contrário também
era verdade. Falávamos de coisas que os outros miúdos não percebiam - na altura qualquer
um dos nossos pais ouvia muita música clássica e liam livros que nós tirávamos "à socapa" e
tentávamos dar significado a cada frase - e depois desfrutávamos plenamente dos prazeres
mais simples da vida... olhar as árvores, ouvir os pássaros... Tudo isto para os nossos "colegas"
era altamente estranho!!! Muitas foram também as vezes que falávamos de planos para o
futuro, conhecermos outros povos, ajudarmos as pessoas e até, ajudarmos outras pessoas noutros sítios...
Um dia, os pais do Liam separaram-se e ele mais as irmãs foram com o pai para Macau.
Recordo esse dia com um misto de angústia, tristeza e perda. Nunca tinha perdido ninguém.
Passaram-se muitos anos até que voltasse, as irmãs vieram para estudar e partiram de novo
na faculdade, uma para Yale e outra para a Sorbonne. O pai voltou no fim de 2000 quando
Macau deixou de ser "empréstimo" a portugueses. O Liam, que esteve grande parte da vida
profissional ligado a ONG´ s voltou esta semana... não sei como, mas na sexta passada tinha
uma carta sua no meu correio em que as primeiras palavras
eram "Deduzo que ainda aqui vivas..."
Ontem encontrei-me com ele, como se nenhum ano tivesse passado por nós: eu continuo, na
sua opinião a cheirar a algo almíscarado e ele, a especiarias... O seu cabelo liso, louro e os
seus olhos de azul profundo e o meu sorriso rasgado e a abarcar o mundo, ainda assim:
- Estás altíssimo, as tuas orelhas estão lindas e pequenas e a tua voz... és um homem!
- Sim, e tu continuas uma garota baixota de mãos lindíssimas e com um corte de cabelo que
nunca vi noutro sítio!
Sorrimos, falámos do que temos feito... não dormimos essa noite, ele passou a noite lá em casa
no sofá e, no dia a seguir não fui trabalhar, continuámos a falar... até hoje!
Afinal acabamos por ser mais! Não muito... mas o suficiente para... marcar a diferença (?!)

4 sakês:

Gi disse...

Esta história trouxe-me recordações de infância ... recordações de como conhecia a minha melhor amiga ... quase igual, o desenrolar e o final são algo divergentes, no entanto.

calminha disse...

ate fiquei asim emocionada, com vontade de trazer recordações e amigos de infancia...coisa boa que te aconteceu, valeu a pena serem diferentes, e continuem diferentes, continuem a disfrutar deas pequenas coisas de cada dia, e não deixem morrer a criança que ainda existe por ai , amadurecer sem perder a capacidade de nos maravilharmos é delicioso.bj e boa semana

Anónimo disse...

Gione... o Liam foi o melhor amigo daquele tempo que, infelizmente não volta mais... contudo, hoje quando falamos já só olhamos para o futuro porque o passado faz de nós o que somos (em parte hoje) mas não nos ajuda a ver com claridade o que aí vem...

Anónimo disse...

Calminha... Antes do mais,não posso evitar de referir que adoro o: CALMINHA!!!!!!!

E por falar em calma... não leves a mal mas, nos dias que correm a criança que há (houve) já era! Parte perdeu-se para as pessoas erradas e a outra parte, acuso: afogou-se em álcool metílico (não é etílico, não senhora!!!!)!!!! Que sempre dá para esquecer e seguir em frente.

Para mais este alcool sempre tem uma chama invisivel que é coisa, que falta a muito boa gente!!!!!!!


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