Zulmira todas as manhãs abria a janela da sua sala e observava... olhava as pessoas que se movimentavam na sua rua, umas em passo mais acelerado e outras mais lentas, e imaginava qual o seu destino.
Zulmira ficava à janela, todos os dias, apenas vendo passar o tempo, o sol, as pessoas, imaginando... vivendo a vida dos outros como se fosse a sua, baseando o seu olhar no olhar da mente.
As vizinhas de Zulmira estranhavam e procuravam convênce-la a ir para dentro de casa assistir às novelas, as da TVI melhores que as outras segundo elas... mas Zulmira retorquia do alto da sua janela dizendo que a melhor novela que ela podia ver era o que acontecia na realidade, os sonhos e os destinos das pessoas comuns, os desejos e os ambientes da rua que atravessava o seu prédio.
Zulmira vive sozinha, tendo apenas um gato como companhia, o nome dele é Zacarias, em homenagem ao marido falecido há 10 anos... Zacarias, tal como a dona, adorava observar, não sabendo imaginar como ela, contudo sonha e abre-se à vida através do seu interior porque já não pode ver... Zacarias foi maltratado quando era bébé e estava cego, Zulmira encontrou-o na rua e trouxe-o para casa... isto aconteceu quando Zulmira ainda saia de casa.
A filha e os netos de Zulmira não a visitavam... ela mora longe, eles vivem em Benfica e ela em Alfama... pode não ser longe para os outros, mas para eles é longe, tão longe como um coração frio pode estar do calor do magma incandescente de um vulcão. Zulmira não esquecia a filha e os netos, a prova disso era as 3 molduras que estavam na mesa ao lado da porta como se fossem os guardiões do seu pequeno mundo.
Zulmira apenas abandonava a janela para comer ou fazer qualquer necessidade primária porque não queria perder nada do que se pudesse passar... dizia para si mesma que tudo parava enquanto ela se ausentava e, caso alguém familiar aparecesse, saberia esperar pelo regresso dela...
Zulmira começava a apresentar sintomas da doença de Alzheimer mas ninguém notou porque poucos lhe davam atenção e Zacarias não podia fazer nada porque não via... os dias passavam-se, as estações do ano corriam, as pessoas que passavam na rua iam envelhecendo tal como Zulmira e isto aproximava-os a todos.
Certo dia, Zulmira olhou no horizonte e sobressaltou-se... Zacarias a seu lado, ao ver a dona modificar o seu comportamento de repente, inteiriçou-se... Zulmira tinha visto um sorriso... Zulmira tinha visto calor nesse sorriso... Zulmira reconheceu o sorriso no meio da sua doença, era o seu Zacarias que estava de volta.
O Zacarias gato não entendeu porque não podia ver, contudo sentiu que a dona estava feliz e quando o fez deixou-se ir, era velho e descansou porque sentiu que Zulmira, finalmente, era feliz.
Zulmira viu Zacarias ao longe, muito longe, mas esticou o braço... ergeu a mão... queria tocar o rosto do homem que a fez feliz ao longo de 50 anos... aquele que ela nunca deixaria de reconhecer... esticou-se toda sem notar os gritos aflitos das pessoas que a viam no fundo da rua... Zulmira esticava-se mais e mais, até que se sentiu leve... pensou que voava... nesse instante tocou-o e sentiu de novo o calor daquele que lhe ensinou o significado da palavra Amor.
Com um baque surdo, Zulmira chegou ao solo mas já nada sentia... morreu com um sorriso nos lábios porque aquele a quem esperava todos estes anos voltou a aparecer para a levar consigo, segurou-a nos seus braços e fê-la sentir de novo mulher, mãe, criança e menina.
Carpe Diem.
7 sakês:
Sabes uma coisa Carpe isto aconteceu comigo (a parte final) em relação ao meu pai.
A sorte é que, em vez da janela, era a minha cama e o trambolhão que ei não me matou.
Um beijo para ti.
Gosto muito do que escreves.
Gi...
Ainda bem que foi apenas da cama, mas sei como te sentiste. Obrigado pelo elogio e espero voltar a ler aquelas pequenas frases tão tuas por aqui em breve :)
Fiquei sem palavras após ler: Zulmira e Zacarias... ;)
Chorei ao ler-te.
É assim que a minha doce Avó, com 91 anos, vive na "sua janela".
O Zacarias dela chama-se Henrique. Parece que vem a caminho... E é com dor imensa que a vamos deixando dar o maior tombo da sua vida.
Beijo.
Me Hate...
Os nomes não foram escolhidos ao acaso e o texto vem do coração por isso obrigado :)
Ovinho (antes de mais adoro este nome)...
Apanhaste muito bem a ideia, trata-se de uma parábola realista. As "varandas" podem ser diversas mas a imobilidade e a idade não perdoam a ninguém com, ou sem, companhia.
Lamento ter-te feito chorar, mas por vezes as lágrimas representam uma gota de esperança ou de lembrança por aqueles que amamos.
Carpe Diem, obrigada por teres recomentado. agradeço a simpática interacção.
É. As lágrimas são isso tudo.
As minhas são, já, as da falta de esperança. A preparar a lembrança.
Abraço imenso.
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