sábado, 17 de maio de 2008

Imaginário XXVII

Morreu, provavelmente, do mesmo modo que viveu: sem que ninguém desse por isso. Ou assim se pensou durante algum tempo.

Quando os polícias entraram em casa depois de os bombeiros arrombarem a porta tiveram que sair tal o espetáculo que se lhes oferecia era horrendo. Era difícil conter os vómitos que a visão de tal cena provocava.

- A medicina legal -

No relatório da autópsia consta que já estava morta há muito tempo, tanto que não foi possível determinar.

Os melhores médicos legistas foram chamados para analisar um caso tão raro e interessante, já que todos os orgãos estavam mirrados, secos, o cérebro parecia um balão vazio, as veias quebravam-se ao mínimo toque e o coração, esse, estava literalmente petrificado.
Mas o mais curioso naquele cadáver concentrava-se na vesícula biliar e não se restringia a um pormenor.
Aquele saco, que nas pessoas normais tem a forma e dimensões semelhantes a uma pêra, tinha naquele cadáver o tamanho de uma bola enorme, produzindo o calculado em cerca de 20 vezes mais bile que uma pessoa "normal" e como se isto não fosse bizarro o suficiente, o seu pH revelava uma alcalinidade máxima, fixando-se nos limites quase hipotéticos do valor 14. Mas o mais extravagante, se os aspectos anteriores não fossem por si extravagantes o suficiente, era que o ducto cístico estava ligado directamente ao cérebro. Do cérebro não havia qualquer tipo de vestígio de irrigação arterial ou venosa, saindo sim um outro canal contendo vestígios de bile que se ligava numa rede estranha ao sistema circulatório, deduzindo-se que seria transportada e distribuída ao corpo a partir do que seria suposto ser o cérebro.

Apesar de em ocasião alguma se lhes ter deparado um caso daqueles, nem sequer nos legados dos antigos estudiosos, a medicina em conjunto com a bioquímica conseguiu determinar a causa da morte a partir de um detalhe que quase passaria despercebido: um corte na língua.
Análises porteriores puderam certificar que apesar de lhe correr nas veias tanto fel, esta criatura não tinha o seu sistema inunizado e num simples descuido uma mordidela na língua revelou-se fatal.

O que teria provocado tal corte? Para ter sobrevivido quase 50 anos saberia que o seu fel era letal para si mesma.

- A investigação forense -

A hipótese apontada pelos criminalistas não excluía o suicídio. Ela sabia muito bem o quão venenosa era, conforme resultados de análises encontrados numa gaveta advertiam. Não havia na casa impressões digitais de mais ninguém, o que sugeria que ela era a única pessoa com acesso à mesma. Da interrogação aos vizinhos confirmou-se o seu total isolamento social.

Todos os consumíveis eram adquiridos on-line conforme a equipa de especialistas informáticos confirmou.

Miss F (de fel) não tinha uma única fotografia em casa. Uma única carta. Não havia nada naquela casa que sugerisse que não estava só, nem mesmo os registos informáticos.

Não havia sinais de luta, nem de entrada forçada nem qualquer tipo de feridas defensivas e ninguém tinha ouvido gritos ou ruídos anormais.

- As conclusões -

A análise dos dados forenses e da medicina legal não foi conclusiva.
O suicídio não foi descartado dado o elevado isolamento da criatura e a morte acidental por uma igualmente acidental trincadela na língua também não foi posto de lado apesar de considerado pouco provável dada a elevada toxicidade do fel e a idade dela.

Miss F acabou num caixão de vidro, preservada de modo a poder ser exposta em qualquer sala de aula, museu, conferência ou palestra em segurança - não para ela, autopreservada no seu fel único mas para quem dela se aproximava, curioso, e se expunha aos elevados riscos químicos que dali emanavam.

Nunca antes se tinha visto e nunca se voltou a ver semelhante coisa.


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