sábado, 20 de setembro de 2008

Memórias I

Hoje, e pelo menos por aqui na minha zona, o dia acordou cinzento. Calmo, abafado e cinzento.

Dias como este transportam-me até à minha infância. Da minha infância os dias que melhor me lembro são os dias cinzentos. E como eu gostava de dias cinzentos...

Não pensem vocês que eu sou uma pessoa cinzenta.
Gosto de todos os dias, não fico triste se estiver sol nem radiante se chover a cântaros. Apenas gosto de todos os dias. Gosto quando faz sol, gosto quando faz chuva. Não gosto muito de vento especialmente o dos dias de inverno que parece lâmina afiada na pele. Não, não gosto de vento. Não gosto dos cabelos na boca, da areia nos olhos nem de, caso esteja a chover, do chapéu-de-chuva a virar-se.
Mas do mesmo modo que gosto de um dia de sol seja ele no inverno ou no verão gosto de um dia de chuva seja quando for. E os dias de chuva para mim são mais especiais, quase os acarinho e muitas vezes anseio por eles.

Dias como o de hoje, dizia eu, levam-me a tempos que parece que já terem sido há muito tempo, não fosse pela nossa referência cronológica terem passado pouco mais de 20 anos e eu diria que tinha sido há décadas atrás - séculos, milénios...

Nestes dias de Setembro que adivinhavam já o fim dos 3 meses de férias de verão eu já não tinha fichas da escola para fazer. Não tendo as minhas fichas não tinha nada para fazer - achavam os crescidos. Mas tinha, eu tinha sempre muito que fazer.

Saía de casa para o quintal e dava uma corrida tentando esquivar-me aos pingos grossos enquanto ouvia, cada vez mais sumida, a voz da minha avó que gritava que eu me ia encharcar e ficar doente e que voltasse para casa. E enquanto ela não vinha abrir a porta para ver o que eu fazia eu rodopiava à chuva correndo para o fundo abrigado do quintal. E quando ela abria a porta já eu estava debaixo de telhas com a minha bata da mercearia vestida.
Abria a mesa de brincar, abria a arca e tirava a minha caixa registadora azul com botões amarelos. Cortava papel que enrolava em rolos apertados e dispunha em caixas improvisadas e devidamente colocadas pela ordem que nesse dia me interessava os produtos imaginários que só eu e os meus clientes imaginários víamos.

Quando a chuva apertava mais a minha loja ficava mais vazia e os clientes tardavam. Nessa altura eu aproveitava para fazer uns desenhos que iam ser quadros um dia ou para fazer as contas do dia e ir buscar mais stocks.

Se chovesse o dia todo eu trabalhava muito.

Quando o sol espreitava os clientes desapareciam. Eu saía do barracão. Fazia uma festinha ao Jota e despia a bata. Com a chegada do sol as brincadeiras acabavam. O meu irmão saía de dentro de casa e vinha buscar a bicicleta dele ao espaço que era a minha mercearia - ou a minha escola ou o meu consultório ou o meu atelier. Eu nunca via a oficina dele e ele nunca via as minhas actividades.
Então quando chegava o sol o meu barracão era outra vez um barracão com dois baús cheios de brinquedos que só ganhavam vida quando chovia.

6 sakês:

Gi disse...

:)
Tenho recordações parecidas;
A chuva, no entanto, era sempre com tempo quentinho.

Vera disse...

:-)
Giro!
Não me lembro de ter a sensação de os dias serem longos demais ou curtos demais quando eu era criança/jovem. Agora sim, tenho a sensação de que o tempo se apressa por terminar...

:-(

Namaste disse...

Saudades
...de todos os mundos criados num espaço onde os outros só viam a realidade...e por vezes pisavam sem querer...
Saudades
...de ser criança de novo e correr à chuva (quente) ao encontro dos sonhos!

Namaste

V. disse...

Gi, Vekiki e Nemaste, onde foi a nssa infância? Porque parece que é intangível?

Bj

pensamentosametro disse...

Estas minhas tardes foram ontem.

Bjos

Ttia

Anónimo disse...

A minha infância... por vezes parece-me que foi mesmo ontem!


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